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Uma breve conversa
Um homem tem uma conversa com a Morte, o que será que eles vão falar?
Se você não está entendendo nada, esse conto faz parte do projeto de aniversário de carreira Bodas Literárias. Ele é um presente aos leitores que tem me acompanhado (ou virão a acompanhar), por isso está sendo lançado de forma gratuita para os assinantes da newsletter. Essa história foi escrita em 2018, mas acabou ficando na gaveta esse tempo todo. Comemorar cinco anos é coisa rara, portanto, resolvi resgatar esse texto que gosto muito. Se você não quiser ler pelo e-mail ou web, pode fazer download do conto em formato ePUB clicando aqui — o arquivo conta ainda com posfácio falando mais sobre sua construção. Semana que vem a newsletter receberá os dois últimos capítulos de Você Não Está Só.
Until your distress sleeps…
Fill me up with your grief…
Uma breve conversa
O fim de tarde nunca foi minha hora favorita.
Sentei-me num banco de pedra, agarrado a uma garrafa de uísque, e virei o líquido pela garganta sem piedade. O álcool desceu queimando. Precisei fechar os olhos por um instante, absorvendo a estranha sensação. Sempre fui fã do vinho noturno, daquele bebido lentamente, mas em grandes quantidades, até a sobriedade ficar jogada na sarjeta junto da honra.
O banco de pedra era duro demais. Doía a bunda e se tentasse colocar as mãos em baixo, acabava cortando-as com a pressão contra as pequenas pedrinhas dos quais era feito. Mas ali eu estava. Virando a garrafa, tomando enormes goles de um uísque barato e sentindo-o ferver pela garganta.
— Isto foi proposital? — disse uma tranquila voz feminina.
Ao meu lado, uma mulher desconhecida.
Os cabelos pretos cacheados mais brilhantes que eu já havia visto. Pele negra, olhos amarelos e lábios coloridos de roxo. Embora estivéssemos num clima primaveril, ela usava um manto de lã preto que escondia seu corpo inteiro, parecendo um servo religioso, embora ao mesmo tempo em nada soasse crente. Não usava símbolos nem falava de forma característica.
— E então... foi?
— Pelo menos não de forma consciente — assumi.
— É mesmo? Que sem graça.
Cravou as mãos contra o assento duro e sacudiu as pernas para o alto, revelando as botas de salto-alto feitas em couro. Era uma mistura de estilos numa só pessoa. Eu não conseguiria colocar em palavras se ela era bonita ou não. Única, com certeza. Daquelas pessoas que facilmente se sobressaem na multidão e te fazem virar o pescoço até doer só para dar uma última olhada. Ela não parecia incomodada com a forma que eu analisava cada detalhe seu.
Mas, no fim, eu só quis continuar bebendo.
— Acho interessante quando dizem que foi, mas não sei o motivo…
— Deve ser seu sadismo — debochei.
— É. Deve ser, mas eu não me acho nada sádica. Você acha?
Ela endireitou-se no banco frio de pedra. Firmou os olhos na cena a nossa frente, assistindo como um filme – e do jeito que seus olhos brilhavam, era um de seus favoritos. A luz de um farol bateu contra seu rosto e ele se transformou em uma caveira por um breve momento.
Tomei outro gole.
A garrafa de um litro e meio parecia inesgotável. Cada gota que descia parecia se reconstruir dentro do vidro. Então continuei bebendo. A única maneira de acabar com alguma coisa é esgotando-a de sua vida. A mão da mulher veio de encontro a minha, mas tudo o que senti foi frio.
Virei o rosto, assustado, os lábios entreabertos para reclamar. Antes que qualquer coisa saia, ela levanta a outra mão e aponta um dedo indicador feito apenas de ossos, sem carne, músculo ou qualquer outro tecido. Perdi a força, porém, ela pressionou meu pulso e isso me fez agir por reflexo e não deixar a garrafa cair no chão.
— Mas que…
A mulher agitou o dedo esquelético.
E eu ousei olhar na direção dele.
Pessoas cercavam um homem caído no chão, imóvel. Ao seu lado, uma garrafa do mesmo uísque que eu estava segurando. Ao seu redor vários cacos de vidro e sangue tingia o asfalto. Havia um carro a apenas alguns metros adiante, o vidro da frente estilhaçado, seu motorista estava sentado, lúcido, ao lado dele com nada além de um corte superficial na testa.
Forcei a vista na direção da pessoa acidentada.
O dono da cabeça ensopada de sangue era eu.
— Oh, entendi — soltei.
Mas não havia entendido nada.
— A ambulância não vai chegar? — perguntei, ingênuo.
— Você não vive em uma cidade pequena, entende? São muitas pessoas, muitas tragédias, poucas ambulâncias…
— Entendi.
A mulher soltou minha mão.
Só então notei que o frio de antes não era culpa dela. Meu corpo estava gradativamente perdendo o calor. Entraria em colapso a qualquer momento. A mulher guardou as mãos dentro manto de lã que não era realmente lã, mas uma chama negra bruxuleando tão devagar que parecia estática. Um enorme sorriso seguido de um lançar de pernas para frente, balançando-as como uma adolescente mimada.
Precisei tomar outro gole de trago.
Voltei a contemplar o meu corpo vitimado.
A única coisa mais apavorante do que se olhar no espelho vivendo é se enxergar tentando sobreviver só mais um pouco. Porque quando você se vê vivendo, resta o medo de perder tudo, mas sobreviver é estar na beira de um penhasco escuro e frio. É saber que a queda pode acontecer a qualquer momento e só vai restar um nome no obituário e um salão cheio de pessoas com suas lágrimas – sejam elas verdadeiras ou falsas.
— Você por acaso bebe? — Ofereci-lhe a garrafa.
— Claro que não, isso mata.
— Que senso de humor estranho.
— Você acha? Eu fui apenas sincera.
— O mundo está tão cheio de mentiras que a sinceridade parece grosseria.
Tomei outro gole sem tirar os olhos da cena.
A ambulância chegou depois de longos minutos, o frio era tudo em mim.
As pessoas abriram espaço. Consegui ver o formato de meu corpo no chão. Um dos braços estava virado do avesso, uma perna formando um S no chão e meu crânio parecia espatifado coberto de vermelho nos cabelos pretos. Os dedos de uma das mãos estavam cortados segurando o gargalo da garrafa quebrada a alguns centímetros de mim.
Olhei o rótulo da garrafa em mãos e suspirei.
Nada daquilo fazia o menor sentido.
A mulher segurou minha mão novamente, mas não os senti.
— Eu odeio ter que dar essa notícia, mas logo precisaremos ir.
— Mas a ambulância chegou — disse-lhe apontando em frente, o dedo murcho como se tivesse ficado horas mergulhado na água —, não acha que é interessante esperar um resultado mais promissor?
— Se você prefere se enganar com essa coisa chamada esperança, claro. Não há problemas. Afinal, o que a Morte sabe sobre mortes, certo? Deixe um paramédico humano decidir se devemos ir ou não.
Suspirei e deixei a garrafa de lado.
Beber não ajudaria nada. Nunca havia ajudado, na verdade.
A ilusão de se tornar um deus da própria vida quando se está entorpecido nunca passa de uma ilusão. O efeito acaba. A realidade bate na porta. Toda a desgraça e tragédia escondida pelo álcool voltam ainda piores e você se pega numa linha onde só há duas escolhas: esconder de novo com mais bebida ou encarar.
Eu encarava até alguns meses antes.
Quando eu ainda tinha uma família inteira. Quando eu ainda tinha um emprego fixo. Quando eu ainda tinha uma namorada amorosa.
Quando eu ainda tinha tudo.
Eu encarava o sofrimento chamado realidade e nem precisava me iludir, pois estava tudo bem. A realidade é dura e, por muitas vezes, terrível, mas é o que existe. Não há como escapar de verdade, independente do quanto tente se esconder, uma hora ela bate na sua porta e se você demorar demais, ela a arromba.
É isso que chamam de vida.
Essa parte cheia de sofrimentos remendados em momentos frívolos de felicidade. Quem não consegue acreditar que a tristeza e o sofrimento são mais comuns que a felicidade também não deve conseguir sentir nada com pureza. A tristeza não é pré-requisito para nada, mas ela é mais comum do que o resto das emoções e sentimentos. Se não fosse assim, nasceríamos gargalhando e não chorando.
Mas esse tipo de pensamento nunca agradou as pessoas ao meu redor.
Não demorou para a minha namorada se tornar ex-namorada quando ela percebeu que jamais conseguiria suportar esse tipo de pessoa. Isto, assim como a maioria das desgraças, não me surpreendeu. É uma coisa natural, tudo tem um fim. Sofri bastante, chorei vários dias, mas continuei no controle. Encarei a dor, encarei o abismo, desaguei aos seus pés e me ergui dando-lhe as costas.
A vida também é feita de confrontos.
Os dias passaram e o mundo não parou. A política destruidora de vidas conseguiu reorganizar um país de empregos em desempregos. Empresas enormes fecharam as portas deixando milhares de pessoas no limite do desespero. Não era incomum ver conhecidos em obituários devido as “mortes súbitas” – a maneira socialmente aceita de falar que o desempregado em desespero pegou uma corda, amarrou ao redor do pescoço, subiu num palco e se lançou.
A empresa para qual eu trabalhava fechou.
Fui mandado embora com um seguro-desemprego e um elogio por ter me esforçado durante anos. Dei um sorriso amarelo, voltei para casa e desabei a chorar. Por vezes o choro é a única coisa que nos resta. Também há vezes em que chorar é a melhor coisa que podemos fazer.
Eu encarei.
Estava desempregado, vivendo sozinho num apartamento onde por vezes encontrava uma foto com minha namorada ou uma peça de roupas suas. A solidão estava pesando, assim como a falta de direção na vida. Mas eu ainda tinha minha família: uma mãe para conversar, um irmão para sair no fim de semana e um pai amoroso ao seu próprio jeito. Uma pessoa deve ser capaz de suportar grandes desastres enquanto possuir uma família por perto, sendo ela de sangue ou não.
Só que isso também mudou.
— Posso te perguntar algumas coisas? — Arqueei o corpo para frente.
— Temos alguns minutos antes de seu salvador falhar.
Os paramédicos estavam averiguando coisas idiotas. Era óbvio que meu braço estava quebrado e que minha perna servia para a logotipo da Sadia, porém eles precisavam ter certeza dessas coisas.
— Por quê?
— Seja mais específico, por favor.
— Por que isso acontece?
— É a natureza — disse, indiferente.
— Não me venha com essa lorota, eu quero um motivo. Por que meu irmão teve de morrer? Por que meu pai teve de cometer suicídio? Por que minha mãe tem de estar decidida a morrer?
Ela me olhou diretamente, metade de seu rosto transformado na caveira. Tinha uma aura sinistra a cercando, embora não houvesse cólera na sua expressão. Morte parecia triste. Genuinamente triste. Como se o seu filme favorito entrasse numa parte amarga e ela precisasse chorar, mas nenhuma gota ousasse escorrer em seu rosto.
— Por que vocês buscam sentido nas coisas ao invés de simplesmente aceitá-las?
— Porque é assim que deve ser. Os humanos não possuem todo o conhecimento do universo como Deus, se é que Ele existe, então devemos criar nossas próprias teorias ou ficar eternamente questionando as divindades. É isso que estou fazendo agora mesmo.
— E acha que isso muda alguma coisa?
— Acredito que isso vai depender de sua resposta.
Ela suspirou.
— As coisas são assim e nada mais. Por favor, você realmente esperava diferente? Eu e você não somos tão diferentes, duas peças dentro de um mesmo tabuleiro chamado existência. Eu existo num universo diferente, claro, mas ainda estou presa à existência. Assim como você existe em outro plano.
— Mas por que você existe?
— Para que vocês deixem de existir. Pelo menos da forma como vocês atribuíram significado a palavra existir.
— Como assim?
O paramédico desistiu de averiguar os danos e chamou reforço. Vieram com os desfibriladores. Eu entendi que estava tudo perdido. Eu deixaria de existir em breve. O rosto dela estava cada vez mais cadavérico, quase como se eu estivesse rompendo um véu e ficasse cada segundo mais fácil de ver além dele.
— Vocês humanos atribuem a existência como o estado de estar fisicamente no universo. Mas Deus, por exemplo, não está e muitos de vocês confiam que Ele exista. Se existe, por que os mortos haveriam de deixar de existir?
— Porque é Deus, oras.
— Ainda não percebeu? Tudo que não existe fisicamente em seu universo não deixa de existir na mente humana, pelo menos não enquanto durar quem o conheça. Deus não existe por estar em outro plano, mas por estar na consciência dos humanos. Seu irmão não deixou de existir por estar morto, ele só deixou de respirar. Era uma respiração tranquila, lembro-me bem. Ele estava mais confuso do que você está agora. E seu pai… ele estava ansioso. Parecia querer muito que eu aparecesse. Mas ele também não deixou de existir.
— Mas o dano de sua não-existência continuou nos corroendo.
— De fato, mas isso não é culpa minha. É de vocês seres humanos tão preocupados com termos inventados por vocês mesmos e interpretados de modo estúpido. A morte nunca foi o fim, apenas uma etapa. A existência das pessoas é mais do que um corpo respirando e um coração batendo. Pessoas existem de várias formas. Em lembranças, em histórias e até em músicas. A saudade, a falta, isso realmente existe. Isso tudo corrói os humanos, entretanto, se vocês usassem mais da razão, isso seria bem menos intenso.
— É impossível uma coisa dessas — disse-lhe, sorrindo debochado.
Meu corpo parou de responder aos estímulos elétricos. Os paramédicos sacudiram a cabeça. Um deles olhou o relógio e disse a hora da morte. Eu não ouvi nada. Naquele momento, conversando com a Morte, os sons do mundo humano não eram mais que zunidos.
— Os humanos são feitos de sentimentos, emoções, impulsos. Razão é uma coisa muito grande para nós aceitarmos de bom grado. Aplicar é ainda mais difícil. Somos programados para isto, entende?
— Vocês são complicados.
— Até demais.
O frio se tornou mórbido.
— Posso fazer outra pergunta?
— Só porque lhe achei interessante.
— Você gosta do que faz?
— É apenas meu trabalho. Nada mais.
Os curiosos foram embora quando o carro do IML chegou. Todos adoram assistir as tragédias, mas poucos tem estomago para continuar quando o sussurro da morte recai no recinto.
— Nós humanos te detestamos, sabia?
— Discordo — ela disse de forma polida, levantando-se. — Vocês não me compreendem, só isso. Agora vamos, acabou a conversa e seu tempo. Preciso continuar a jornada.
— Isso vai doer?
— Não mais do que deve ter doido ser atropelado.
— Seu senso de humor é terrível.
Ela abriu os braços e revelou um esqueleto puro. O rosto voltou a ser amigável, como uma velha amiga. Estremeci. Ela se aproximou e fechou o abraço. Fui envolvido em seu manto; tudo ao meu redor desapareceu na escuridão.
E eu também.
FIM
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