Você Não Está Só #1

Capítulo 1 — Vultos do Passado

abrem-se as cortinas,

as pétalas flutuam no ar

sumindo com as vidas;

uma tragédia vai começar.

— Vultos do Passado.

Capítulo 1 — Vultos do Passado

Revisão: Bianca Ribeiro.

A tragédia corre em minhas veias.

Todas as pessoas que amei desde a infância se dissiparam como pétalas ao vento nos últimos seis meses. Começando pela minha mãe, acertada por uma pedra na vesícula que levou a uma pancreatite aguda. Declararam seu fim no mesmo sábado que ela deu entrada no hospital. Jonas deixou o mundo dois meses depois, esfaqueado em uma ruela voltando do trabalho. Bruno, o irmão do meio, desistiu do mundo há três dias, atrás da porta do quarto.

Eu não terei um final feliz.

Fecho os olhos e respiro fundo. Solto o ar aos poucos. Baixo os olhos observando meu corpo esticado na cama de casal sem conseguir me mexer. Linhas escuras cruzam o cobertor branco em alta velocidade pelos lados, escalando meus braços com centenas de patas finas e harmônicas. Volto a apertar os olhos e tento gritar. As articulações da boca parecem ter feito o movimento, mas não passa de uma sensação fantasma criada pelo meu desejo de clamar por ajuda.

As aranhas tecem a teia ao redor dos meus braços, me aprisionando em uma armadilha astuta. Quando terminarem, eu estarei condenado. A ideia aperta no fundo do meu crânio como uma chave de fenda. Tento gritar mais uma vez, mas percebo como é inútil buscar ajuda em uma casa em que todos partiram.

Puxo o ar outra vez, agora com mais dificuldade. Meus braços se tornaram dois casulos de teias-de-aranha. Uma criatura sinistra assiste aos pés da cama. Misturado às sombras em seu sobretudo preto, esconde a parte superior do rosto com a aba do chapéu-coco e mostra um sorriso de orelha a orelha, os dentes afiados.

A respiração entrecorta, cada nervo do corpo ressoa em medo. Tento expulsá-lo com a voz, como minha mãe nos dizia para fazer ao ter pesadelos, mas não consigo projetar uma palavra sequer e assim meus olhos se arregalam. Hiperventilo encarando seu sorriso estático. Os batimentos estalam na caixa torácica. O enorme corpo projeta uma sombra cada vez maior sobre a cama.

Tudo escurece por um segundo. O ar volta aos pulmões, que inflam, forçando as costelas até doer. Sento-me na cama em sobressalto, a respiração ainda entrecortada e o coração acelerado. Todos os músculos doem pela tensão e o suor cobre o corpo como se fosse verão. Fecho os olhos e puxo o ar contando até cinco. Prendo a respiração por três segundos e solto devagar por mais cinco. Respeito meu tempo e repito o exercício. Meus batimentos se aquietam e os pensamentos se realinham.

Não há aranhas na cama ou uma entidade de sombras. Foi tudo fruto da paralisia do sono, um problema do qual sofro desde os sete anos, quando vi o Chapeleiro, como chamo esse encosto, reclinado na porta do meu quarto me olhando por debaixo do chapéu, com aquele maldito sorriso.

Jogo os pés para fora da cama a procura dos chinelos. Os episódios de paralisia têm piorado desde que minha mãe se tornou uma pétala ao vento. Penso ser pelo fato de ter sido o primeiro grande trauma da minha vida, mesmo eu tendo vinte e dois anos. Outra possibilidade é que meu inconsciente esteja projetando a figura do Chapeleiro porque minha mãe costumava falar que suas orações nos protegeriam e agora ela não está mais por perto.

Após muitos anos de episódios noturnos, descobri que não sou o único tendo encontros com uma figura como essa. Existem fóruns e sites dedicados apenas ao fenômeno de ver um ser com as mesmas características do Chapeleiro, mas chamado de outros tantos nomes em vários lugares. Ele é apenas um símbolo no inconsciente coletivo da humanidade. Uma representação mental do medo ou como minha mãe, uma evangélica fervorosa, costumava dizer: um demônio dos sonhos, assim como Freddy Krueger.

O celular desperta na cabeceira ao lado da cama. Preciso de café… e de um banho, penso e esfrego os olhos com uma mão enquanto desligo o despertador com a ponta do dedo da outra. Saio do quarto arrastando os pés com os chinelos quase arrebentando. Paro no corredor entre os quartos e o banheiro e solto os braços ao lado do corpo com o coração dolorido.

O silêncio do apartamento é ensurdecedor.

Cresci com minha mãe e dois irmãos mais velhos. Nossa casa sempre foi barulhenta. Café encantava o cheiro do amanhecer todos os dias, o chuveiro elétrico vibrava por vários minutos, em ciclos entre cada morador e às vezes isso levava a breves discussões e batidas na porta que me acordavam independente do despertador. Bruno tinha muito cuidado com seus cachos volumosos.

Um sorriso acha espaço no meu cansaço.

Boto o café para passar e me jogo debaixo do chuveiro. A água quente acerta o topo da cabeça e escorre pelo corpo. O calor alivia a tensão sobre os ombros, pescoço e costas. Eu não preciso demorar no banho, meus cachos são curtos e nunca dei tanta atenção para os cuidados adicionais necessários. Ainda assim, me permito aproveitar o relaxamento. Ninguém vai brigar se eu demorar mesmo, penso com um sorriso.

As memórias que me fazem sorrir também me amaldiçoam.

Encosto a mão na parede e inclino a cabeça para baixo. Miro os pés, está tudo embaçado. Aperto os olhos, respiro fundo. Bruno está na maldita cama da madeira com um rosto tranquilo. Bato o punho fechado na parede. Eu não quero me lembrar dele assim.

Procuro no rolo de memórias os momentos de risadas que compartilhamos ao longo da vida. Bruno era dois anos mais velho, então tínhamos muito em comum. Gostávamos de assistir as mesmas coisas, brincávamos na infância e até dividimos o quarto por um tempo quando moramos em um apartamento menor. Sei que tenho lembranças desses tempos, mas não consigo achá-las.

Tudo o que surge na mente é seu rosto pálido, tranquilo e sem vida.

Volto a encostar a testa na parede. Quero bater a cabeça até arrancar essa lembrança dolorosa. Eu sei que isso não mudaria nada; Bruno continuaria debaixo da terra e a casa, silenciosa. Coloco o rosto debaixo da água quente para arrancar esses pensamentos de mim.

Saio minutos depois, o rosto ardendo. A imagem se distanciou e foi colocada em uma caixa do inconsciente que pretendo não mexer por um tempo. Enrolo-me numa toalha e paro na frente do espelho embaçado pelo vapor. Passo a mão nele, revelando o reflexo de um rapaz de pele bege, cabelos cacheados curtos e escuros e enormes olheiras.

Para onde foi aquela criança sorridente e cheia de vida?

Que pergunta idiota.

Escuto o segundo despertador vindo do celular. Sirvo uma caneca de café preto antes de ir ao quarto. Interrompo o toque, vendo duas notificações novas com o nome de Melissa em destaque. Está me falando para ficar em casa e descansar a cabeça após o que aconteceu três dias atrás. Solto um riso anasalado com a ideia. Eu não faltei aula após minha mãe se dispersar por uma fatalidade, por que iria pela desistência de Bruno?

Tomo um gole de café com uma mão e abro o aplicativo com a outra. Melissa também enviou figurinhas engraçadas de uma personagem fofa de anime fazendo cara de braba. Consigo vê-la tendo a exata mesma reação, os lábios de boneca fazendo biquinho antes de abrir um largo sorriso que mostra aqueles dentinhos de coelho fofinhos.

A imagem que se forma na minha mente me faz sorrir.

 

[07:20, XX/XX/XXXX] Melissa: vc sabe que não precisa ir né?

[07:20, XX/XX/XXXX] Melissa: POR LEI vc tem direito a três dias de luto!!!

[07:22, XX/XX/XXXX] Ian: Eu vou mesmo assim.

[07:22, XX/XX/XXXX] Ian: Não deixa roubarem meu lugar do seu lado, tá?

 

Lanço o telefone na cama, pois sei que ela vai insistir. Irá usar o que aprendemos no curso de psicologia para tentar me convencer e vou ter vontade de ceder porque ela já deve ter notado, após três anos de amizade, que tenho dificuldades em falar não para ela. Como não teria? Basta olhar para ela para sentir que o coração vai rasgar o peito e sair voando por bater tão depressa. Mas eu não posso parar a minha vida porque a dos outros foi interrompida. Seguir em frente também é uma forma de honrar suas vidas.

Tomo outro gole, depois outro e mais outro. Quando noto terminei a caneca e já preciso de outra dose. Meu celular vibra na cama com as novas mensagens de Melissa. Finjo que estou ignorando para não me atrasar para o ônibus e não porque sei do poder que ela exerce sobre mim. Visto uma boxer preta, jeans justos com um cinto quadriculado preto e branco e uma camiseta de banda. Tenho a impressão de ver algo passar correndo atrás de mim e encaro meu reflexo no espelho ao lado da cama, percebendo que não tem nada atrás de mim.

Embora cansado, isso no reflexo ainda sou eu.

Guardo o celular no bolso, estendo a toalha na porta do quarto e deixo a caneca na pia da cozinha. Quando me viro para a sala, tenho certeza de que vi alguma coisa indo até a sacada apertada do apartamento. Talvez seja um pássaro que entrou e não consegue sair. O frio no estômago diz que é outra coisa. Algo fantasioso que não faz o menor sentido.

Entro na sacada e tudo o que encontro são as duas poltronas com a mesa de cabeceira no meio, onde fica meu cinzeiro favorito e o brilho do sol deixando tudo dourado. Esfrego os braços sentindo um frio estranho, suficiente para me fazer bater os dentes e deixar sair uma fina fumaça branca dos lábios. Tento convencer minha mente de que isso deve ter sido por ficar a noite inteira com uma fresta do vidro aberta, mas não consigo tirar de mim a sensação de que alguma coisa muito diferente esteve aqui.

Mesmo após tocar, apertar e esfregar os braços incontáveis vezes, eles continuam frios. Aperto as sobrancelhas e fico mais perto da janela, passando os olhos no condomínio para ver se mais alguém está sentindo este clima bizarro. Vejo do lado de fora das grades laranja-escuras as pessoas usando roupas de meia-estação. Eu devo ter morrido, brinco com um sorriso desagradável. A ideia não é tão ruim assim.

Dou de ombros, preciso seguir a vida. Antes de eu me virar, porém, encontro outra vez o vulto. Desta vez ele aparece no lado de fora, entre os arbustos e árvores do condomínio. Parece uma silhueta humana, não mais alguma coisa disforme. Pressiono os olhos. Aperto a testa no vidro. Um sorriso desabrocha na silhueta, afiado e perverso.

Engulo em seco todo o nervosismo espalhado no corpo. Coloco a mão no coração, sentindo-o latejar contra as costelas. Posso ouvir o pulso nos ouvidos como uma canção mórbida.

Aquele é o sorriso do Chapeleiro.

Quando foi que voltei a dormir? Será que nunca acordei do episódio? Devo estar preso dentro de um pesadelo ainda mais elaborado. Essa é a única explicação para estar tendo uma alucinação tão detalhada dessa criatura. Abro o vidro, fico apoiado no parapeito da janela e encaro a silhueta. Ela ficou mais nítida, posso ver o desenho do chapéu e do sobretudo, mas dessa vez ele não esconde os olhos; ele me encara com o brilho vermelho deles.

Caio sentado na poltrona que Bruno costumava usar para fumar. Sacudo a cabeça tentando encontrar uma explicação razoável para estar vendo essa coisa fora do mundo dos sonhos. De olhos fechados encontro os rostos da família em suas camas de madeira. Também revejo três dias atrás, o momento em que cheguei em casa e encontrei a corda enroscada na maçaneta.

Foram tantos lutos em tão pouco tempo, que ninguém me julgaria por começar a perder a razão. Pego um cigarro da gaveta da mesinha ao lado. Acendo-o com uma tragada profunda que me enche feito um balão e solto devagar até a cortina branca cobrir minha visão.

Começo a sentir vontade de rir. Consigo conter a primeira onda que vem junto da lembrança de todas as vezes que me chamaram de resiliente por enfrentar as coisas sem perder a calma. A segunda onda vem ao me lembrar como meus irmãos e minha mãe relataram ver vultos semanas antes de suas partidas abruptas. Dessa vez eu solto um risinho. A terceira onda vem com o pensamento de que isso tudo pode ser um indicativo de psicose na família, porém, não consigo evitar o riso alto já que não tenho muitas informações do lado materno.

O cigarro está pela metade quando consigo parar o riso. Embora haja essa névoa familiar, consigo pensar no lado paterno. Meu pai entrou com o divórcio quando eu tinha três anos, mas ainda tivemos contato até meus sete.  Ele se mudou com sua nova família para o Espírito Santo. Nunca mais nos falamos, embora ele ainda pagasse pensão.

Jonas e Bruno tiveram menos contato com as famílias de seus pais, pois os perderam ainda mais novos que eu. O pai de Jonas foi atropelado por um motorista embriagado e o de Bruno foi encontrado morto em uma barraca com altos níveis de cocaína no sangue.

A névoa ficava mesmo era no lado materno. Éramos uma família pequena. Minha mãe foi criada pela sua tia Hermínia. Minha avó faleceu durante o parto e o paradeiro do meu avô era desconhecido, minha mãe sequer carregava seu sobrenome. Era apenas Márcia Andradas. Não havia outras irmãs, meus bisavós tinham morrido há muitos anos e minha tia odiava falar sobre minha avó, carregando muitos segredos juntos dela quando faleceu no ano passado.

Finalizo o cigarro e o amasso no cinzeiro. Cruzo os braços sobre o parapeito da janela. Contemplo o condomínio mais uma vez, não há silhueta com olhos vermelhos e sobretudo preto. Vejo apenas pássaros pousando em galhos, aproveitando uma pausa antes de continuar o exercício de voo.

Se eu me inclinar um pouco mais para frente vou cair, o pensamento atravessa meus pensamentos de forma intrusiva. Analiso a situação baixando os olhos até o concreto na frente do prédio em que moro no terceiro andar. Quebraria um braço ou uma perna, mas continuaria vivo. Baixo a cabeça, fecho os olhos e visualizo meu irmão nesse mesmo lugar fumando maconha perto do anoitecer. Bruno adorava fazer isso. Falava que aquilo o relaxava e o deixava mais conectado consigo mesmo. Talvez tenha sido esse o motivo, reflito, pensando em como se conhecer pode ser doloroso.

Uma vizinha sai do prédio da frente e acena em minha direção. Posso ver em seus olhos a pena que sente de mim. Na faculdade será assim também, pessoas virão usar palavras baratas para tentar amenizar a dor da perda. Esfrego os olhos que ainda parecem cansados pelo sono perturbado. Sento-me novamente, desta vez na poltrona que eu usava. A hora na tela do celular só mostra que perdi o ônibus e chegarei atrasado.

Melissa tentou me convencer com várias mensagens com explicações razoáveis. Solto um riso anasalado. Só deve ter parado de mandar mensagem para pegar o ônibus e depois que não me viu esperando no ponto me enviou uma última mensagem querendo saber se estava tudo bem.

— Será que tem como ficar bem um dia? — lanço a pergunta ao além. Encaro o céu cinzento com pesar. Pego outro cigarro e prendo nos lábios, digitando uma mensagem simples e direta para Melissa.

“Acho que enlouqueci, ficarei em casa, não deixe ninguém roubar meu lugar ao seu lado.”

Comentários do Autor

Decidir como iniciar uma história é sempre difícil. Esse capítulo foi reescrito inúmeras vezes até chegar nesse resultado. A cena do pesadelo, porém, sempre foi a mesma. Esse detalhe inicial nunca foi mudado. Podemos dizer que ela foi a primeira cena imaginada para toda a história, o pontapé inicial dentro da minha mente. Tenho pavor de aranhas, para ser honesto, então tentei trazer um pouco desse medo para dentro das páginas.

A outra parte difícil ao iniciar a história foi decidir como seria a introdução dos personagens. No fim, ficou decidido que esse seria focado no Ian. Então me pergunto: o que você achou dele? Bom, semana que vem você conhecerá a Melissa também. Quem será que você vai gostar mais? Ou será que vai se apaixonar pelos dois logo de cara? Ser escritor é difícil, mas é tão divertido…

Até semana que vem~

Gogun