Você Não Está Só #10

Capítulo 10 — Investigadores e Ficantes

Anteriormente…

O fantasma de Bruno apareceu na frente de Ian tentando passar alguma mensagem e isso o levou a achar mais sobre sua avó, mas as pistas ainda são escassas…

quero estar com você até parar de respirar

quero estar com você até você parar de respirar

quero estar, quero ser, quero viver, quero morrer

quero tanto querer vencer que não sei como esquecer

que querer tanto algo é mais perigoso do que morrer

que querer tanto alguém é tão perigoso quanto amar.

Investigadores e Ficantes.

Capítulo 10 — Investigadores e Ficantes

Revisão: Bianca Ribeiro.

Sinto os cobertores deslizando pelos meus pés, uma onda fria escala minhas canelas. Tento abrir os olhos, mas é como se eles tivessem sido grudados. Sacudo o corpo, os braços estão amarrados junto ao tronco. Onde estou? Como isso foi acontecer? Tento novamente abrir os olhos, desta vez com mais força. As pálpebras se rasgam, sangue verte pelas minhas bochechas, quente e viscoso, e a dor me alfineta como uma agulha longa. Um brilho pálido acerta minha visão, a névoa maldita que cobre o ambiente sempre que algo ruim vai acontecer.

— Ian… socorro…

Acompanho a voz com os olhos. Melissa está sendo puxada pelos pés, seus dedos agarram o lençol como se a vida dependesse disso. E talvez dependa. Quero segurar sua mão para que ela não seja levada, mas não consigo alcançar. As amarras estão fortes demais. Desço os olhos aos meus pés onde enormes garras estão puxando as roupas de cama. Agito os pés, chutando a perversidade que tenta nos destruir.

— Você conseguiu. Ian, você conseguiu.

Um sorriso coberto de lágrimas surge em seu rosto por um instante e então se transmuta em puro pavor. De supetão seu corpo é arrastado para fora da cama e uma silhueta esguia se ergue na frente da cama. Olhos vermelhos, o sorriso, aquele maldito chapéu. Desta vez, porém, ele parece muito, muito maior. Curvando-se ao encostar no teto e segurando Melissa pela perna, de ponta-cabeça, os cachos rosados balançando no ar.

— Ian! Ian! Ian!

Eu não consigo me mexer. Por quê? Por que isso está acontecendo? Como chegamos nisso? Eu lembro de ter encontrado vários documentos da minha avó em uma pasta dentro da cama-baú do Bruno. Eram atestados, receitas e laudos com o nome dela, feitos por um médico do qual nunca ouvi falar em toda a minha vida. Depois disso fomos dormir. Eu me lembro perfeitamente de vê-la se aconchegar debaixo das cobertas e me puxar para dormir de conchinha.

Entendi. Isso é mais um pesadelo.

— Ian!

Sento-me na cama em sobressalto, o coração abrindo um buraco no peito. Todos os meus músculos e nervos voltam a funcionar. Sangue algum está escorrendo pelas minhas bochechas. Melissa está ao meu lado, assustada e em segurança. Abraço-a com toda a minha força, escuto ela arfar, mas não me afasta. Apenas retribui fragilmente, encostando a cabeça no meu peito.

Todos os sonhos têm significados. Meu inconsciente está com medo de perdê-la como perdi minha família. Consigo pensar racionalmente, no entanto, alguma coisa dentro de mim se remexe como uma centopeia passeando pelas minhas veias. Essa é a segunda vez assistindo-a ser levada pela escuridão. Dentro de mim é como tê-la visto morrer duas vezes. Aperto-a um pouco mais forte, as lágrimas insistindo em ganhar espaço atrás das pálpebras.

Eu não quero perdê-la.

— Você teve outro episódio de paralisia.

— Sim… dessa vez foi mais… estranho.

— Mais? Isso é possível?

Afirmo com a cabeça e coço os olhos. Percebo o amanhecer do lado de fora pela fresta da cortina mesmo com o clima nublado. Melissa se espreguiça fazendo a camiseta subir e revelar as coxas grossas e a calcinha roxa. Abafo uma risadinha cínica, pois penso que combina com seus cabelos. No instante seguinte, ela segura meu queixo com os dedos e me faz olhá-la nos olhos, mas acabo prestando atenção é nos seus lábios volumosos.

— Que tal faltarmos aula?

— É uma ótima ideia.

Melissa sorri antes de puxar meu rosto e me beijar com anseio.

— Acho que escolhi o homem certo.

— Certo para o quê? — questiono com um sorriso debochado.

— Para estar ao meu lado. Já falei que você não vai mais se livrar de mim, lembra? Eu tenho as chaves do apartamento!

— Quem diria que seria assim tão fácil namorar você.

Melissa fica com as maçãs do rosto avermelhadas e segura o sorriso.

— Somos namorados então?

— Não era isso que você estava falando?

Sinto o corpo congelar de medo. Posso ter entendido errado. Melissa já esteve em relacionamentos de apenas algumas semanas, chamando os envolvidos sempre da mesma coisa: ficantes. Abaixo a cabeça envergonhado. Como fui bobo.

— Desculpa, eu devo ter confundido as coisas…

— Bem, agora somos ficantes, mas só porque você ainda não pediu.

Quer namorar comigo?, sobe pela garganta, até entreabro os lábios, porém, interrompo antes de ser tarde demais. Ela tem um sorrisinho amarrado no rosto, mas quando fico um segundo a encarando me lembro do pavor que ela apresentou nos sonhos. Eu não posso ser assim tão egoísta. Se eu a pedir em namoro estarei colocando muito peso em seus ombros. Arriscaria a vida dela e seu coração. Talvez ela sobreviva, mas ela passaria a ser a mulher cujo namorado morreu e nunca mais vão a olhá-la da mesma forma na faculdade. Eu não tenho muito tempo no fim das contas.

— Pedirei no momento certo.

— Ah, entendi.

Melissa dá as costas para mim e sai da cama. Ajeita os cabelos rosa amassados do sono. Vai até a janela e abre o resto da cortina, observando o horizonte.

— Eu não quis chateá-la — falo deitado sobre o cotovelo.

— Não me chateou. Na verdade, eu já esperava essa resposta.

— Mel, não é que eu não queira namorar você.

— É só que você não acredita que vá sobreviver.

Um silêncio sepulcral recai no ambiente. Não consigo respondê-la. Ouço sua língua estalando no céu da boca, a cabeça balança para os lados visivelmente incomodada. Avisa que vai passar café e sai apressada. Tento alcançar seu pulso para mantê-la comigo mais um pouco, mas, assim como nos pesadelos, ela se esvai para longe.

Suspiro e bato a testa na cama. Eu sou um idiota, reclamo, ergo os olhos e miro as nuvens cinzentas do outro lado da janela.

Saio da cama usando apenas uma boxer preta. Escuto Melissa preparando o café na cozinha. Encosto-me no batente da porta, assistindo enquanto ela anda para lá e para cá usando minha camiseta, os cabelos lembram algodão-doce. Passeio com os olhos pelo seu corpo, notando cada detalhe. As linhas nas laterais das coxas que lembram a transparência da água do mar, a linha da camiseta destacando a grossura das coxas, o contorno de seu quadril largo e o desenho da bunda.

Melissa é a mulher mais linda e gostosa do mundo.

— Eu não quero perder a chance de ver isso todos os dias.

— Precisa sobreviver mais do que seis semanas para isso.

Concordo em silêncio.

— Já não prometi que irei?

— Ian, seja honesto comigo. Você acha que vai sobreviver?

Melissa coloca a mão sobre a pia e a outra na cintura, as sobrancelhas curvadas parecem prestes a explodir. Queria que ela parecesse menos encantadora assim.

— Eu vou tentar.

— Não é o suficiente, Ian. Não quando estamos lidando com o mundo espiritual dessa maneira. Precisamos ter .

— Eu não acredito em Deus.

— Pelo menos acredite em você!

Melissa nunca ergueu a voz dessa forma antes. Abaixo a cabeça me encolhendo dentro da vergonha. Gostaria muito de acreditar em coisas melhores. De ver uma luz no fim do túnel que me levasse direto aos braços dessa mulher incrível diante de mim, mas ainda que eu esteja determinado a tentar, eu não consigo ver salvação para mim. O mundo espiritual é um borrão confuso para mim. Não existe razão nele, processo científico, pesquisas, experimentos. Existem filmes e charlatões. Crenças difusas que colidem umas com as outras.

— Minha mãe era uma cristã devota. Meu irmão falava que tinha seus orixás. Nada disso evitou que eles fossem embora para sempre, então como exatamente eu devia acreditar que será diferente comigo?

— Porque você tem uma coisa que nenhum deles teve.

— Ah, claro, o quê?

— Tempo e conhecimento.

Franzo o cenho esperando que ela me explique. Melissa sorri mais animada e desmancha a postura de brava. Assim ela fica mais gentil, mas a beleza contínua igual. Impressionante.

— Pense bem, Ian, sabemos quanto tempo você ainda tem, assim como quem está por trás disso e o porquê. Tudo começa na sua avó, só temos que encontrar as evidências seguindo os rastros dela. Nenhum dos outros três tiveram essa oportunidade.

Eu não havia pensado dessa maneira. Aceitando ou não o sobrenatural, tenho recebido avisos a vida inteira. Pesadelos, episódios de paralisia do sono, a figura de chapéu. Os sinais existiram desde minha infância, eu apenas não quis acreditar neles.

— Sabemos também que o espírito faz pactos — adiciono.

— Exatamente! Podemos usar isso a nosso favor de alguma forma.

— Não é meio errado fazer pactos?

— Estou pouco me fodendo para o que é certo ou errado, Ian.

A firmeza com a qual ela fala isso faz meu corpo inteiro vibrar. Por que isso foi tão excitante? Melissa desce os olhos e os levanta com um sorriso malicioso. Acho que ela percebeu. A cafeteira atrás dela faz o barulho para indicar que o café está pronto e isso me salva das piadas que ela deve ter pensado.

— Precisamos descobrir onde minha avó vivia. O atestado de óbito marcava novembro do ano passado.

— Novembro… espera, quando exatamente de novembro?

Dou de ombros, não faço a menor ideia. Volto ao quarto de Bruno. Sua cama se transformou em nossa mesa de estratégia na noite anterior após eu acordá-la para compartilhar as novidades. Assim que seguro o atestado de óbito começo a rir.

— Deixa eu ver.

Melissa arranca das minhas mãos e eu me permito cair sentado na cama, a caneca fica na cabeceira.

— Exatamente dois meses antes da minha tia-avó.

— Isso significa que…

— Sim. As mortes começaram nela.

Balanço a cabeça para os lados. Pensava que minha tragédia familiar fosse apenas com minha mãe e irmãos. Minha tia estava velha, sua morte foi considerada natural para todos. Infarto fulminante aos oitenta anos é bastante comum, ainda mais numa senhora que pouco se cuidava e fumava muito. Pelo visto estávamos errados.

Começo a rir de forma descontrolada e faço uma pergunta ridícula:

— Que tipo de pacto faz com que toda sua família acabe assim?

— Eu não sei, Ian, mas vamos descobrir e impedir que leve você.

Assinto, mas não consigo crer plenamente.

Melissa se aproxima e põe minha cabeça em sua barriga num abraço. Entrelaço sua cintura me agarrando a essa esperança frágil de que podemos ficar juntos para sempre. As lágrimas ameaçam cair, mas eu não as permito. Preciso aproveitar o momento ao lado dela, não ficar lamentando o futuro.

Levanto o rosto para ela. Seus polegares passam pelas minhas bochechas. Como podem olhos tão bonitos serem reais? As estrelas em seu rosto me iluminam mais do que o sol do lado de fora. Melissa abre um sorriso sutil e só então percebo que também estou sorrindo só de olhá-la.

Puxo seu corpo com mais vontade. Coloca os joelhos no colchão, esmagando alguns documentos, e sobe em mim. Senta-se em meu colo e me envolve pela nuca com seus braços.

— Vamos resolver isso juntos, está bem?

— Juntos — repito com um sorriso maior.

Melissa assente e me beija. Ficamos nos encarando no fundo dos olhos, em silêncio. Os cabelos rosados emolduram o rosto estrelado. Estou encantado com a beleza dela. Ela abre um sorriso tímido, mostra os dentinhos só um pouquinho, as maçãs do rosto ruborizam.

Neste momento eu acredito que podemos mudar se fizermos juntos.

Os pelos do meu braço arrepiam com o frio repentino. Feixes brancos começam a tomar forma dentro do quarto. Melissa estremece com a sensação e olha para trás em reflexo. Não há nada para ver ainda. Sem saber o que aparecerá, eu toco duas vezes em suas costas e ela sai de cima de mim.

— Você está vendo alguma coisa?

— Não…, mas não quero esperar para ver.

Melissa concorda em silêncio. Pega na minha mão e no instante seguinte estamos no corredor entre os quartos. Fecho a porta, um dos documentos médicos em mãos. A névoa que começava a se formar lá dentro não nos persegue. Já é um bom sinal. Melissa solta minha mão e vai até a cozinha. Coloco o papel sobre a mesa na sala e me sento no sofá. Ela volta com duas xícaras fumegando o cheiro de café.

— Por onde começamos? — pergunta sentando-se ao meu lado.

— Descobrindo mais sobre a morte dela.

Tomo um gole de café. Ainda não faz muito sentido que ela tenha estado viva durante todos esses anos e nós nunca tivemos acesso a ela. Quão ruim você precisa ser para que sua família finja que você morreu? Outro gole, esse desce mais amargo. Minha mãe não era do tipo rancorosa, ao menos nunca demonstrou nada assim. Até sua crença religiosa, em tese, pregava o perdão. Ainda assim ela com certeza sabia sobre o estado da mãe e não fez nada para mudar.

— Todos os documentos sobre essa mulher indicam o mesmo médico. Parece ser alguém que acompanhou sua vida por muito tempo. Acho que precisamos fazer algumas perguntas a ele.

— É uma boa — ela fala com a voz um pouco distante, os olhos fixados no meio do nada. Passo a mão na frente do rosto dela, tirando-a do transe. Balança a cabeça. — Desculpa, estava pensando em coisas.

— Que coisas são essas?

— No que aconteceu no centro espírita.

Desvio os olhos. Aquilo nunca devia ter acontecido. Não com ela.

— Eu acho que ele não contou toda a verdade para você.

— Não me surpreende — debocho.

Melissa me fulmina com o olhar.

— Desculpa…

— Tudo bem, pelo menos seu ceticismo está mudando.

Bebo café para não fazer cara feia.

— Ele fez mesmo um pacto com sua avó. E ele pareceu sincero quando falou que você precisa morrer. Mas não pareceu que ele quer que você morra. Quando ele falou da semelhança entre vocês foi como se ele estivesse… fascinado.

— Por que uma entidade ficaria fascinado com uma coisa tão biológica?

— Não faço ideia. Acho que talvez não tenha nada a ver com biologia.

Franzo o cenho. Melissa bebe o café em silêncio, os olhos abertos não piscam, como se os pensamentos estivessem buscando as palavras certas. Termina de virar a xícara e segura-a com ambas as mãos, a fumaça cobre seu rosto por um breve instante.

— Acho que você é especial, Ian.

— Obrigado pelo elogio?

Melissa revira os olhos e solta um risinho.

— Idiota. Eu quis dizer espiritualmente.

Uma careta toma conta do meu rosto. Eu não tenho nada de especial. Enxergar coisas horríveis é uma maldição, não uma bênção. Quando vejo a entidade de chapéu, quando vi o espírito no centro, quando vi meu irmão… nenhuma dessas situações foi especial, apenas terrível.

— Você acha mesmo que isso faz diferença?

— Não sei, mas é importante termos em mente.

Assinto mesmo sem concordar.

— De qualquer forma precisamos descobrir mais sobre minha avó.

— Sem dúvidas. Podíamos ir até a clínica desse médico.

— Não quero te atrapalhar.

— Ainda pensando assim? Ian, eu estou com você, não estou?

Está, eu quero falar, mas as palavras se enrolam na minha língua.

Melissa suspira.

— Você é mesmo um idiota.

— E você gosta desse idiota.

— Gosto mesmo. Muito.

Sorrio com suas palavras, mas meu coração estremece. Observo ela colocando a xícara no canto do sofá. Quando eu me for em seis semanas esse gostar vai apenas causar dor nela. Estico o braço e boto a minha xícara sobre a mesa de vidro. Volto a encará-la e percebo que seus olhos estão investigando alguma coisa em mim.

— Talvez seja melhor eu fazer isso sozinho. Eu não quero que aconteça algo como no centro espírita.

— Eu não vou te deixar sozinho, Ian.

Fica mais próxima e coloca a mão em meu rosto.

— Eu não quero que você se machuque.

— Então não desista de se salvar.

Arregalo os olhos, o coração bate mais depressa.

Concordo em silêncio, mas algo dentro de mim avisa que é impossível encontrar salvação para uma pessoa como eu.

Comentário do Autor

Cada vez mais próximos do fim do segundo arco da história, o romance entre os personagens fica cada vez mais intenso. Mês que vem teremos um capítulo a menos, por causa dos feriados, mas estaremos encerrando o ano com a conclusão do arco dois. Enquanto isso, se você gosta do meu trabalho, confira meu último lançamento Devorado pelo Vazio que está em promoção até o dia 02/12 na Black Friday Amazon!

Esse livro é muito importante para mim, por isso não me importo de promovê-lo em simultâneo do lançamento atual. E talvez você tenha notado como tenho usado as redes sociais, especialmente o Instagram, como menos um espaço de divulgação constante no feed e mais um espaço para compartilhar coisas. Meio que desisti de enfrentar o algoritmo e resolvi aceitar ser eu. Talvez seja menos funcional para a lógica da plataforma, mas é melhor pra mim… e bem, é isso!

Gogun.