Você Não Está Só #12

Capítulo 12 — Ligação Inesperada

Anteriormente…

As descobertas sobre a avó de Ian os levam a maior entendimento sobre a própria família dele. Agora que eles sabem onde a avó dele passou a vida escondida contra a própria vontade, eles tem um novo destino para a investigação…

sinto falta de sua voz

todos os dias

e hoje um pouco mais

 

não se desculpe.

Ligação Inesperada

Capítulo 12 — Ligação Inesperada

Revisão: Bianca Ribeiro.

Um trovão faz com que as janelas do quarto estremeçam. Melissa continua dormindo em meu peito, minha mão direita faz cafuné lento nela. Nossos corpos nus se esquentam debaixo dos cobertores. Se as próximas semanas forem assim, eu não me importo de morrer. Aperto os olhos, este pensamento não combina com o sentimento que tenho sobre ela. Suspiro, as janelas começam a bater por causa dos ventos.

Eu não conseguirei dormir essa noite.

A chuva fica mais forte. Escapo de fininho, deslizando o braço e a deixando sozinha na cama. Vejo ela se ajeitar mais, encolhendo-se toda. Envolvo-a com os cobertores para ficar o mais aquecida possível. Visto a cueca derrubada no chão mais cedo, a camiseta e coloco um roupão. Paro na porta e dou uma última espiada na mulher mais linda do mundo que dorme na minha cama.

Sento-me no sofá com um joelho erguido, o cotovelo apoiado nele. Aproveito o momento para escutar os sons da natureza. A tempestade é assustadora, mas também bela. Minha mãe costumava falar que até mesmo momentos assim eram envios de Deus. Nunca aceitei muito bem essa ideia, ainda mais vendo como tantas pessoas sofrem devido aos desastres que inevitavelmente se tornam as tempestades no Rio Grande do Sul. Só que hoje entendo que não era sobre ser bom ou ruim. Ela estava apenas tentando me ensinar que, às vezes, as coisas são como são. Acontecem como devem acontecer.

Ergo o rosto. A chuva dentro de mim começou a vazar. Será que ela também é obra de Deus? Limpo as lágrimas com os dedos, contenho essa estranha vontade de desabar. Será que há um Deus mesmo quando o Diabo realiza um pacto com sua família? Solto uma risadinha debochada. Pensar nessas coisas parece fantasioso demais mesmo depois de tudo.

Eu não quero acreditar nessas coisas. Elas não têm lógica. Não é previsível como a ciência. Deus, demônios, fantasmas, espíritos. Tudo isso é, além de fantasioso, incerto e perigoso. Não apenas para mim, mas para as pessoas ao meu redor também.

O rosto assustado de Melissa ao ser tomada pelas trevas volta a mente. Aperto os olhos tentando arrancar a imagem, mas acabo revendo seus olhos brancos ao ser possuída pela entidade. Abro os olhos com raiva, escondo metade do rosto atrás do braço e apoio o queixo no joelho. Um relâmpago atravessa os céus provocando um clarão no apartamento.

Onde está você, Deus? Pergunto como se fosse receber alguma resposta. Meu telefone vibra no canto do sofá. Me estico para conferir. É uma ligação. Parece não ser um número comum. A tela mostra apenas o ícone de chamada, mas nenhum número ou nome. Fico de sobrancelhas apertadas, não sei exatamente o que está havendo, mas atendo. Depois de todas as coisas absurdas, isso não parece tão anormal assim.

— Alô?

Há apenas estática do outro lado. Salto do sofá até a sacada para conseguir ter um sinal melhor. A chuva faz muito barulho contra as janelas. Sento-me na poltrona que Bruno usava. A estática fica mais ruidosa, preciso afastar um pouco do meu ouvido.

— Desculpa — uma voz sussurra do outro lado.

Encosto de novo na orelha. A tela do celular parece ter sido congelada, pois provoca um choque térmico contra a pele. O ruído volta a tomar conta da ligação. Uma nuvem pálida se forma a frente do meu rosto por causa da respiração.

— Quem está falando?

— Desculpa… filho…

A estática fica alta demais para meus ouvidos. Tiro de perto de mim, atirando o aparelho na outra poltrona em reflexo. Meu tímpano dói. A tela escurece mostrando que a chamada foi encerrada, mas fico encarando-a sem entender muito bem o que estou sentindo.

Era minha mãe do outro lado da linha.

A chuva fica mais forte, dentro e fora.

 

***

— Mel? Mel?

Melissa abre os olhos devagar. Sento-me ao lado dela, a caneca de café fumegante em mãos. Ela boceja, confusa, e pisca várias vezes. Coça os olhos tentando acordar. As cobertas caem sobre seu colo, revelando a nudez dos seios, a cicatriz de queimadura que escala seu corpo, as pintas nas escápulas. Assisto cada movimento dela como se estivesse vendo uma gatinha manhosa.

— Bom dia, Mel.

— Bom dia, Ian. Está tudo bem?

— Sim, só vim trazer café.

Entrego a ela a caneca. Melissa aceita, cobre a parte superior com o lençol e fica encarando o conteúdo, a fumaça sobe contra seu rosto e ela não parece se importar. Pego a caneca deixada na cabeceira ao lado da cama e tomo um gole. Melissa me olha com a cara amassada, os cabelos bagunçados e a beleza mais divina que um ser humano pode exibir.

— Que foi? — Melissa pergunta de cenho franzido.

— Nada. É que você é linda.

Revira os olhos, ameaça um risinho e toma o café o escondendo.

— Idiota. Eu devo estar um monstro.

— Não, eu já vi monstros, você está mais para um anjo.

Para me encarando com um sorriso de canto que não consigo decifrar. Talvez a brincadeira não tenha dado muito certo, mas é a verdade. Monstros possuem chapéus e sorrisos estranhos. Às vezes o corpo é craquelado e os olhos são pálidos como leite.

— Onde você dormiu? Acordei de madrugada e você não estava na cama.

— Eu não dormi — assumo.

A expressão dela faz parecer um absurdo.

— Você precisa descansar.

— Sei disso, mas não quis encarar o que vem ao dormir.

— Está falando da paralisia do sono?

Concordo com um gole de café.

Melissa solta um suspiro alto.

— Se você quer ficar comigo, precisa se cuidar.

— Foi só dessa vez, juro.

— Sei…

Ela me lança um olhar fulminante, mas seus lábios ameaçam sorrir. Melissa é mesmo um ser angelical. Sento-me ao lado, desço o rosto e encosto nossas testas. Fecho os olhos. A fumaça dos cafés sobe cobrindo nossos rostos. Passo a ponta do nariz de leve sobre o nariz dela. Sei que ela desabrochou o sorriso mais lindo de todos pelo som sutil que ela faz. Beijo sua boca devagar. Saboreio o sabor da bebida quente e dos lábios macios dela.

— Não tente me enganar com beijinhos.

— Eu jamais faria isso… — debocho com um sorriso de canto.

Melissa sacode a cabeça e leva a caneca aos lábios.

Encaro o canto do quarto em que Bruno apareceu no outro dia. Fico pensando na ligação no meio da noite. Na voz da minha mãe se partindo em ruídos estáticos. Bebo um gole do café, a fumaça esconde meu rosto por um instante, mas diferente da neblina branca e fria do outro mundo, essa faz meu rosto suar.

— Aconteceu alguma coisa?

— Não, por quê?

Segura meu queixo e me faz encará-la nos olhos. Todo meu corpo esquenta. Meu coração erra uma batida. O sangue flui para lugares que não deveria estar fluindo. Recaio a atenção a boca dela, a maciez dos lábios levemente umedecidos com café e então sigo descendo aos seios cobertos apenas até a metade com o lençol.

— Ei… olhe para mim — sussurra.

— Sim?

Melissa sorri e solta meu rosto.

— Parece que descobrimos coisas novas sobre você hoje — debocha.

— Isso foi golpe baixo.

Ri atrás da mão, balançando a cabeça para os lados. Só ela para fazer brincadeiras assim no momento mais delicado da minha vida. Tomo meu café, isso me ajuda a aliviar as sensações.

A chuva volta a bater na janela.

— Mas sério — ela diz e coloca a caneca na cabeceira —, o que foi?

Respiro fundo. Eu não tenho como mentir para ela. Não adiantaria. Melissa é observadora e, mais importante, me conhece de verdade. Talvez a única pessoa viva neste mundo que já viu meu eu real.

— Eu falei com a minha mãe.

— Ok…, mas ela falou contigo?

Desvio os olhos. Tenho medo do que isso possa significar. Será que já estou com um pé no mundo dos mortos? Assinto sem a olhar. Ela não tem nenhuma reação imediata. Volto a buscá-la com os olhos como uma mariposa atrás de uma lâmpada. Seu rosto está pensativo, os dedos seguram o próprio queixo como um detetive de filmes.

— Como foi? Ela apareceu como o Bruno? Foi só a voz?

— Você vai me achar louco.

— Alguma coisa ainda é capaz de parecer loucura para você?

— Não, você tem razão. Ela falou comigo pelo telefone.

Melissa aperta as sobrancelhas na maior confusão de sua vida.

— A voz dela saiu pelo telefone ou ela te ligou?

— Ligou. Eu disse que ia parecer loucura.

— Dessa vez eu vou concordar.

Suspiro, mas ela solta uma risadinha muito fofa. Está tirando sarro da minha cara. Reviro os olhos rindo. Só ela consegue me fazer rir em momentos estranhos como se a vida não fosse uma colmeia de problemas. Encaro seu rosto, as estrelas salpicadas nele me proporcionam uma sensação de paz.

— Obrigado.

— Está agradecendo o quê?

— Por você ser você.

 Melissa vira o rosto, a fumaça do café esconde de leve sua expressão, porém, posso ver o desenho do sorriso tomando forma. Tomo o último gole do meu café e saio da cama para dar espaço a timidez dela. Faz frio, mas pelo menos sei que não é vindo do outro mundo, porque também estou sentindo o calor da paixão percorrendo meu estômago.

Se eu me virar agora acabarei usando as três palavras mais importantes.

— Você já fez a rematrícula?

— Nem lembrava disso — Melissa confessa.

Isso, vamos mudar de assunto, assim não cometo loucuras.

— Já faz uma semana que abriu — reforço.

— Aconteceu tanta coisa na última semana… Já fez a sua?

— Não. Nem irei fazer.

— Já falei que se ficar desistindo da vida—

— Eu só vou desistir da faculdade — interrompo olhando a caneca vazia.

Melissa fica em silêncio. A chuva fica um pouco mais forte lá fora.

— Por quê?

— Não é isso que faz meu coração bater mais forte.

— E o que é?

Olho na direção dela, depois de volta a borra de café.

Lembro-me das conversas com Bruno, Jonas e até mesmo com minha mãe antes de fazer o ENEM. Eu nunca tive grandes pretensões. Ir para a faculdade era como uma etapa obrigatória após os esforços da minha mãe. Nunca foi nada além disso. Ela, no entanto, não está aqui para ver isso acontecer.

— Ainda preciso descobrir, mas com certeza não é esse curso.

— Essa é uma decisão de coração ou pelas circunstâncias?

— As circunstâncias ajudaram bastante nessa decisão. Eu não sou uma pessoa normal, não é? A própria médium falou como sou sensível a essas coisas. Não acho que seja bom trabalhar acolhendo demônios pessoais dos outros.

Quero rir por estar falando uma coisa tão idiota como essa, mas é realmente um dos motivos.

— E minha mãe está morta — complemento dando de ombros, mas o coração se aperta tanto que posso senti-lo sangrar. — Eu posso escolher meu próprio caminho sem lidar com expectativas, não é?

— Ian…

— Tomei muitas decisões tentando ser um filho ideal. Escolhi estudar um curso desses porque ela ficava feliz com a possibilidade de eu ser da área da saúde. A verdade é que eu nunca me interessei de fato por nada disso.

Melissa se levanta e vem em minha direção como um relâmpago. Encaixa-se ao redor dos meus braços e acomoda o rosto em meu peito, procurando uma forma de me esmagar. Apoio o queixo no topo de sua cabeça, o silêncio tenta nos encontrar e a chuva lhe impede de crescer.

Fecho os olhos aproveitando o momento com ela. Chego a apertá-la um pouco mais forte. E eu não tenho mais muito tempo, admito dentro da caixa lacrada chamada consciência. Que vontade de fumar um cigarro…

— Que tal trancar a faculdade ao invés de só desistir? — Melissa pergunta, o rosto se afasta do meu peito, as mãos continuam em mim. — Assim, se mudar de ideia, mantém a vaga.

— Eu não acho que mudarei de ideia.

— Sei lá, vai que queira exibir pros colegas que está me pegando.

— Esse é mesmo um bom motivo para continuar na faculdade.

Melissa dá uma risadinha contente. Deposito um beijo em sua testa.

— Eu vou trancar o curso. Se depois de um semestre ainda quiser encerrar minha matrícula eu encerro. Melhor?

— Muito melhor.

Damos um selinho estalado que me tira um riso frouxo. Voltamos a ficar abraçados e de olhos fechados. Embora o frio não seja sobrenatural eu tenho a sensação de estar sendo observado. Pior, sinto-me julgado. Mas dessa vez posso afirmar ser coisa da minha cabeça. Os mortos não julgam nossas decisões, quem faz isso somos nós mesmos.

— Você não vai sentir falta de nada? — Melissa pergunta baixinho.

— Do tempo com você.

Melissa me abraça mais apertado. Nos intervalos das aulas, era comum zanzarmos pelo campus. Às vezes ficávamos sentados em um banco tomando sol e bebendo chimarrão. Na maioria das vezes, porém, a gente só andava a esmo conversando sobre a vida. Íamos aos prédios de outros cursos, nas cafeterias distantes do nosso. Quando tínhamos aula até tarde ou algum evento importante, passávamos no churrasquinho pra comer alguma coisa e comprávamos doces de Pelotas numa lojinha pequena que só abria nestes momentos. Quando chovia ou estava frio demais não deixávamos a sala. Inúmeras vezes compartilhamos fones de ouvidos para deixar o tempo passar devagar até a professora voltar.

Sentirei muita falta de tudo isso. Assim como será estranho não ver o mesmo ambiente de árvores altas, prédios baixos e muito verde todos os dias. Não terei motivo para visitar uma biblioteca com livros tão velhos que apenas ficar perto da porta já é motivo para espirros.

— Está tudo bem, Ian?

— Hum?

— Você está chorando.

Aperto os olhos, confuso. Enxugo as lágrimas, pisco algumas vezes. Encontro uma silhueta contornada no desfoque da visão. Assinto em silêncio, mantenho a postura. Melissa seca uma lágrima perdida e acaricia minha bochecha.

— Ainda teremos tempo juntos. — Sua voz é gentil.

— Eu sei, mas não será a mesma coisa.

— Mas estaremos juntos.

— Juntos.

Sinto o sabor da palavra na ponta da língua e sorrio.

Melissa se afasta com a mão no meu peito.

— Posso fazer a minha rematrícula online, mas você precisa ir até o campus se quiser trancar, por causa da bolsa.

— Nem me lembre disso…

— Lembro sim, pois é melhor fazer isso logo.

Suspiro pesado, mas quando baixo os olhos e a encontro tudo fica leve.

A vontade de chorar dessa vez me invade e eu a percebo antes de derramar a primeira lágrima. Finalmente estou com a mulher por quem me apaixonei, mas em algumas semanas talvez eu nem esteja mais neste mundo para aproveitar. Melissa franze a sobrancelha, confusa e preocupada. Meus olhos ficam cheios d’água.

Eu só quero viver a minha vida sem encarar essa maldição.

Eu só quero viver a minha vida ao lado de Melissa.

Viro o rosto e engulo o choro.

— Irei fazer assim que possível.

— Podemos fazer hoje — Melissa anuncia. — Você tranca, eu faço a rematrícula e na volta nos preparamos para visitar o hospital colônia. As férias começaram de qualquer forma.

— Está parecendo que alguém andou planejando isso.

— Em poucos minutos, acredita? Se ainda tiver tempo podemos aproveitar de um jeito bem especial.

A sobrancelha dela se curva de forma maliciosa ao falar aquilo.

— Não pode ser especial agora?

— Você é mesmo um safado.

— Por você.

Melissa pula se agarrando no meu pescoço e eu a beijo com vontade.

Quando percebo já estamos na cama outra vez.

Comentário do Autor

Quem nunca pensou em trancar a faculdade? Na verdade, eu tranquei por um semestre. Foi uma excelente decisão, embora na época ninguém achasse. Nem eu achava na época, mas hoje vejo e penso como isso me deu mais tempo com meu irmão. Alguns meses a mais jogando videogame, assistindo anime e rindo juntos. Foram só alguns meses, um semestre, mas foi perfeito. Escrevo isso ouvindo I Can Never Say Goodbye da The Cure e meu coração se aperta. Às vezes são essas decisões que soam estúpidas que nos permite viver mais tempo com quem amamos, assim como Ian está fazendo para se dedicar a ter mais tempo com Melissa. Será que ele vai conseguir?

Gogun