Você Não Está Só #13

Capítulo 13 — Antes de partir...

Anteriormente

Sabendo para onde devem ir, o casal começa a se preparar. Ian decide trancar a faculdade, pois não tem mais certeza se quer estudar e muito menos se terá tempo. Eles estão prestes a ter uma última chance de mudar o destino dele, mas antes de partir…

se amanhã for nosso último dia na terra

você se lembrará de mim com ternura?

se amanhã formos para uma guerra

você aceitaria ver minha feiura?

 

se amanhã for nosso último dia vivos

hoje será nosso último dia juntos

cada um de nós com seus motivos

se entrelaçando até virarmos defuntos

 

se amanhã tudo acabar

é com você

que quero estar.

Antes de partir…

Capítulo 13 — Antes de partir…

Revisão: Bianca Ribeiro.

Sacudo a perna direita como se minha vida dependesse disso. Detesto fazer coisas burocráticas, sempre tenho a sensação de que algo muito, muito errado vai ocorrer. A atendente saiu para buscar a papelada para realizar o trancamento da matrícula tem mais de cinco minutos. Será que ela descobriu alguma inconsistência? Olho para trás, outros alunos esperam nas cadeiras. Melissa não está comigo, ela foi até a coordenação do nosso curso para conversar sobre as disciplinas do próximo semestre.

— Aqui está, Ian. Só preciso que você assine nesta linha aqui.

A moça me entrega uma folha simples com uma linha no rodapé. Seguro a caneta com dificuldade, o corte da brincadeira com o copo ainda dói debaixo dos curativos. Coloco a ponta da esferográfica no papel. Um peso cai sobre meus ombros. O rosto da minha mãe vem à mente, mas não daquele jeito pesaroso dentro do caixão. Lembro-me dela orgulhosa quando viemos assinar minha primeira matrícula, pois eu ainda era menor de idade, já que comemoro aniversário em novembro.

— Está tudo bem?

— Sim, está sim.

Engulo o choro. Assino. Forço um sorriso. A moça agradece e diz que a partir de amanhã o sistema mostrará a pausa na matrícula. Reforça que posso voltar a usufruir da bolsa em um determinado período e então se encerra. Agradeço com a minha via da solicitação em mãos, dobrando-a. Levanto e observo o fluxo de atendimentos no enorme salão. Acho que vou sentir falta desse ambiente também.

A moça que me atendeu chama outro número. Um rapaz um pouco mais jovem fica na minha frente com um olhar confuso. Dou espaço, sorrindo amarelo, e saio do salão. O vento frio toca minhas bochechas com gentileza como de costume nesse enorme campus. Ajeito o gorro marrom que coloquei para me proteger do frio e enrolo melhor o cachecol rubro-negro. Envio uma mensagem para Melissa avisando aonde irei. Ela recebe, mas não visualiza.

Deixo as mãos dentro dos bolsos do casaco de moletom. As árvores farfalham ao meu redor com uma canção invernal. Fecho os olhos, puxo fundo o ar frio que arde as narinas. Fico sorrindo feito um idiota, a natureza que cantarola ao meu redor está me lembrando o significado de estar vivo. As cicatrizes feitas por mim repuxam com o vento gelado que atravessa minhas roupas.

Sento-me em um banco de madeira que fica de frente para uma fonte. Escutar o som da água fluindo é tranquilizante. Ainda está muito nublado, porém a chuva cessou, consigo encarar o céu sem precisar apertar os olhos. As nuvens vagam de forma melancólica, escondem qualquer raio de sol que possa haver.

 Essa foi a decisão certa, falo comigo mesmo, mas assim que fecho os olhos outra vez vejo apenas o rosto da minha mãe. O sorriso orgulhoso dela assinando os documentos. A felicidade com a qual ela contou a todos na sua igreja sobre o filho que havia entrado na faculdade com uma bolsa integral.

Quando tentei retomar a ligação para ela na noite passada, eu não consegui. O número não existia. Queria ter falado com ela um pouco mais, perguntado se ela ainda tinha orgulho de mim mesmo após ter entrado num centro espírita, feito o jogo do copo e tentado falar com os mortos. Se ela conseguia ficar feliz com a minha decisão de trancar a faculdade ou se eu só estava dando desgosto e sendo ingrato.

Eu só queria poder falar com ela mais uma vez.

— Você vai falar com ela muito em breve — uma voz áspera sussurra.

O frio começa a me esmagar. Abraço o próprio corpo tremendo de frio. Percebo a névoa me contornando como uma serpente, sua palidez chega a incomodar os olhos. Vasculho o perímetro atrás da entidade que falou comigo. Tenho certeza de que ele está perto. Vejo estudantes passeando pelo campus, aproveitando seus melhores dias.

Dedos frios encostam em meus ombros. Todo meu corpo enrijece. Arregalo os olhos, o coração trava. Fios negros escorrem pelo meu corpo, viscosos e gélidos. Ele vai me levar. Esse é meu fim. Irei morrer. Serei levado para dentro da escuridão como Melissa naquele pesadelo.

Melissa…

— Vá embora — ordeno.

Os fios param de escorrer. A névoa fica menos gelada.

— Pelo visto você decidiu dançar conforme a música.

— Eu tenho outra escolha?

A criatura ri atrás de mim. Meus ombros ficam mais pesados, meu coração está prestes a abrir um buraco no meu peito. Estou morrendo de medo de ter irritado uma entidade sobrenatural e sofrer em suas mãos, mas não é como se ele já não estivesse me matando aos poucos, levando cada pessoa que amo. Minha mãe falava que os espíritos malignos não tinham poder sobre nós a menos que déssemos a eles.

Espero que isso seja verdade.

— Eu ainda tenho algumas semanas.

— Realmente, esse é o acordo que tenho com sua avó.

— Me deixe em paz até o dia marcado.

— Qual a graça de comer uma alma que não esteja apavorada?

Jogo a cabeça para trás e encaro-o. A única coisa que encontro é uma massa de sombras, olhos vermelhos brilhantes e o sorriso de dentes afiados debaixo do chapéu, porém, não há um rosto. Nenhuma feição humana pelo menos. Apenas uma camada obscura.

— Eu não tenho medo de você.

— Quem está tentando enganar, garoto?

A mão de sombras se enrosca no meu pescoço, sinto o ar faltar. Flashes dos rostos daqueles que amo em caixões me assombram de repente. Os olhos brancos de Melissa no centro espírita. Aquele pesadelo em que as trevas vencem. Vejo todas essas coisas em um piscar de olhos. Um lembrete de todo o poder que essa criatura possui; um poder que eu não posso vencer.

Derramo lágrimas, mas elas não são tristes.

— Que belo olhar. Igualzinho ao dela.

Meus dentes se apertam de tanta raiva.

— Não é a hora marcada — repito entredentes.

— Logo será.

Seu corpo desaparece como um holograma, minha cabeça pende para frente, liberta do aperto da criatura. Esfrego as mãos debaixo do cachecol, sentindo o vergão no local em que ele encostou. Arrumo de novo o acessório no pescoço, escondendo possíveis marcas.

Coloco as mãos nos bolsos, estico as pernas e encaro os tênis sujos. Ele é forte demais, não posso vencê-lo. Tive um pouco mais de certeza da minha morte após ele encostar em meu pescoço. Ainda assim, eu o enfrentei. Eu realmente o confrontei. De onde veio essa coragem?

— Ian! — Melissa me chama do outro lado da fonte.

Ela está linda usando um cachecol amarelo, o gorro azul-marinho que se mistura perfeitamente aos seus cabelos rosados. Usa um dos meus moletons de uma banda de nu metal. Antes que ela chegue mais perto, já estou em pé e de braços abertos. Melissa se encaixa perfeitamente. Beijo sua testa de olhos fechados. O calor de sua pele é suficiente para me fazer ficar distante do que acabou de acontecer.

— Trancou a matrícula?

— Sim. Renovou a sua?

— Sim! Vai ser chato ter que encarar alguns professores sem você.

— Estarei lá quando você voltar da aula.

Melissa sorri e o sol volta a brilhar para mim.

 

***

Subimos as escadas acompanhados dos sons das sacolas de compras. Passamos no mercado antes de virmos para casa. Melissa disse que era importante termos provisões se fossemos passar um dia rondando uma cidade abandonada.

Levo a mão ao bolso em reflexo por estar chegando no meu andar. Entretanto, não preciso fazer nada. Melissa pega as próprias chaves, enfia na fechadura e me olha sorridente. Solto a chave no interior do moletom e acabo sorrindo de volta. Cada vez que a vejo assim meu coração fica um pouco mais leve apesar de tudo o que tem acontecido.

Assim que ela abre a porta, porém, eu vejo o sorriso maléfico do Chapeleiro no fundo do corredor entre os quartos. Engulo em seco. Ele ajeita a aba do chapéu e entra no quarto de Bruno.

— Está tudo bem?

— Sim, só cansei de subir as escadas.

Franze o cenho, mas não volta a questionar. Meu sedentarismo não é nenhuma novidade para ela. Fecho a porta atrás de mim e coloco as sacolas sobre a mesa de vidro. Melissa começa a tirar as compras de dentro. Garrafas de água, dois potes de Pringles e alguns chocolates Trento.

— Lanche dos campeões — debocho.

— Pelo menos vai nos dar energia.

— Só iremos a uma cidade abandonada, não iremos gastar tanta energia.

— Tomara, mas não é melhor estarmos preparados?

Sempre é melhor ter um plano de contingência. Assinto em silêncio, caindo sentado no sofá. Respiro fundo, solto o ar de uma só vez. Meus ombros continuam tensionados. Melissa leva as garrafas até a geladeira, seu rosto brilhante e seus cabelos rosados em processo de desbotamento fazem com que ela destoe da desgraça que minha vida se tornou nos últimos meses.

Melissa é a melhor parte da minha vida.

Encaro o teto branco-amarelado com pesar. Penso no que a entidade falou sobre meu olhar ser igual ao “dela”. Deve ter se referido a minha avó. Gostaria de tê-la conhecido. Minha mãe teve seus motivos para escondê-la de nós. Preconceito, medo, ignorância. Não sei. Só sei que se tivéssemos conhecimento dessa figura antes de tudo isso acontecer, talvez nada tivesse acontecido.

Suspiro outra vez, desta vez com mais pesar. Pensar nisso me faz questionar minha sanidade de novo. Estou mesmo assumindo que ter conversado com ela poderia mudar o curso das coisas baseado na ínfima possibilidade de termos resolvido os problemas espirituais? Quando foi que resolvi aceitar essa loucura toda?

O peso do corpo de Melissa ao meu lado faz meus pensamentos se distanciarem. Viro o rosto, a cabeça ainda jogada para trás. Ela prende um cigarro nos lábios, as mãos vão em busca do isqueiro. Queria ser o cigarro. Queria estar preso em seus lábios neste momento. Ela acende e assopra a fumaça para a janela aberta ao lado dela.

— Você ficou estranho a volta toda — comenta entre tragadas.

— Só estou reflexivo.

— A respeito do quê?

— Tenho bastante coisa para pensar, não acha?

Melissa dá de ombros com o cigarro pendurado na boca.

— Desde que não esteja pensando em desistir…

— Eu não vou desistir, Mel. Isso significaria não ficar com você.

Ficamos nos encarando em silêncio por algum tempo que mais parece uma vida inteira. Ela sorri, a fumaça do cigarro subindo sobre o rosto. Faço um esforço descomunal para sorrir de forma honesta, mas não consigo porque, embora não vá desistir, não consigo crer que tenho salvação. Ainda mais após aquela conversa com a entidade.

Desvio os olhos. Ele deixou claro mais de uma vez que é impossível realizar qualquer mudança no pacto feito com a minha avó. Talvez esteja mentindo. Eu não descarto essa possibilidade. Mas e se não estiver? Acabo pensando todas as vezes. Meus irmãos estão mortos. Minha mãe está morta. Minha tia-avó está morta. Todos após o primeiro dominó ser empurrado: minha avó.

E se meu único destino for a morte?

Volto a encarar a beleza de Melissa, cujo cigarro agora está na boca. Tenho certeza de que o meu destino é a morte; e isso serve para todo ser humano neste mundo. Aquela entidade me quer em algumas semanas, mas poderia muito bem cair da janela, ou ser atropelado por um caminhão, ou me engasgar com a comida e morrer.

A vida humana é efêmera.

Vivê-la é a única coisa que nos resta.

— Eu não sei o que vai acontecer, Melissa.

— Do que está falando, Ian?

— Não posso te dizer que vou sair vivo dessa. Quero muito, acredite, mas não posso afirmar isso. Talvez amanhã quando formos até essa cidade abandonada eu acabe morrendo.

— Para com isso!

Os olhos dela se enchem de lágrimas. Apaga o cigarro no cinzeiro que passou a deixar no braço do sofá. Viramos juntos, sentados sobre os joelhos, entrelaçamos nossas mãos no encosto do móvel. Sorrio para ela, desta vez a expressão vem do fundo do coração.

— É a verdade e você sabe disso. Vamos fazer tudo o que for possível. Tentaremos descobrir uma forma de reverter esse pacto. Mas temos que entender que, às vezes, não podemos mudar o rumo das coisas. A morte acontecerá inevitavelmente.

— Mas não precisa ser de forma tão prematura. Eu não quero te ver partindo tão cedo, Ian. Tenho tantas coisas que quero fazer com você ao meu lado. Quero ir à Noite dos Museus, na Fantaspoa, até um passeio qualquer na Casa de Cultura do Mario Quintana! Viajar, conhecer novas cidades, enfrentar novos dilemas, coisas que não sejam demônios e maldições de família.

— Eu também quero tudo isso, Melissa. Cada coisinha e muito mais. Exatamente por isso eu não vou mentir para você: eu estou com medo. Tenho muito medo de ser tudo em vão. De não adiantar mais e eu só ter essas semanas. Tudo o que eu quero viver com você não cabe dentro de seis semanas… eu preciso de uma vida muito maior com você.

Ficamos de mãos dadas. Olho no olho. Está difícil enxergá-la por trás dessa camada de lágrimas. Tudo o que preciso para ser feliz nessa vida está nas minhas mãos neste exato momento.

— Por isso quero te pedir uma coisa, Melissa.

— Peça.

— Se não conseguirmos mudar nada amanhã… se eu ainda estiver fadado a tragédia…, por favor, vamos apenas aproveitar ao máximo cada instante da minha vida. Deixe-me queimar com esta paixão até que minha existência seja extinta.

Melissa não fala nada, apenas avança sobre meus lábios em um beijo ansioso. Nossos corpos se conectam com o magnetismo de nossos corações. Deixamos o calor nos envolver até que uma fagulha se acenda. Ela sobe em meu colo, as mãos ao redor do meu pescoço. Seus olhos estão molhados, mas um sorriso tenta iluminá-los.

— Vamos aproveitar cada instante juntos — ela diz.

— Juntos — eu repito.

O beijo que ela deposita nos meus lábios e suficiente para eu ignorar a sensação de estar sendo observado e mergulhar nas chamas que nossos corações provocam.

Comentário do Autor

Muito obrigado por embargar nessa jornada que já dura três meses! Ver que tem gente lendo essa história me deixar muito, muito alegre. Sempre falo isso, mas um autor não existe sem um leitor. Posso escrever inúmeras coisas, se ninguém ler, de nada adiantará. O ato 2 se encerra aqui, mas não a história, essa continuará a partir do dia 08/01/25!

Que você tenha um ótimo natal e ano novo! Continuarei estudando, praticando e esboçando ideias para trazer histórias ainda melhores a partir de 2025. Sua companhia será mais do que bem-vinda nessa jornada.

Até 2025!

Gogun