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Você Não Está Só #15
Capítulo 15 — A Herança da Bruxa
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Anteriormente…
Ian e Melissa viajaram até o Hospital Colônia Santa Mônica, local em que a avó dele viveu a vida inteira e tiveram um misterioso encontro com um fantasma, mas as respostas ainda não foram achadas…
como o sol, vejo seu sorriso brilhar
milagres podem mesmo existir?
ilumine tudo até eu acreditar… ou queimar.
Capítulo 15 — A Herança da Bruxa
Revisão: Bianca Ribeiro.
Minha garganta arde como o inferno.
— Você está bem, Ian?
Assinto em silêncio, piso firme, me apoiando num dos joelhos, e levanto com ajuda do encosto do banco de madeira. Derrubo-me sentado nele, a mão esfrega o pescoço como se fosse possível limpar a dor. Melissa cai sentada do outro lado, os braços apoiados nos encostos e as mãos suspensas no ar.
— Ele tentou entrar na igreja, por isso os vitrais trincaram. Acho que não queria que o padre nos contasse alguma coisa. Talvez tivesse medo de que ele pudesse nos ajudar a impedir seu destino, Ian.
— Ou…
Minha voz falha e eu aperto os olhos. Ou ele só quis nos assustar é o que quero falar, pois não posso confiar em um demônio. Em nada do que ele faz. Muito menos se ele souber que Melissa tem uma conexão com ele.
— Isso é uma boa notícia, Ian.
— Duvido — consigo dizer.
Ela me fulmina com um olhar irritado.
— Um pouco mais de fé seria bom.
— Posso aceitar muita coisa menos ter fé cega — resmungo, massageio minha traqueia e observo os arredores. Nenhum sinal de um fantasma ou demônio. Somos só nós dois. — E se ele estivesse apenas querendo nos assustar? Você viu como o padre ficou?
— Vi…
Ela abaixa o rosto, entrelaça os dedos e esfrega os polegares.
— Bruno estava daquele jeito?
— Sim.
— Deve ter sido horrível vê-lo assim…
— Um pouco, sim.
— Desculpa. Estava tão entusiasmada com a possibilidade de tudo o que sempre acreditei ser mais real do que imaginei que acabei sendo insensível com você.
Balanço a mão para os lados. Penso na revelação da mãe dela sobre perder um filho e como isso estava conectado às cicatrizes dela. Melissa confessou também que havia perdido o irmão, embora sem maiores detalhes. Vivendo no lugar dela eu também teria me empolgado. Se tivesse a chance de conversar com meus irmãos sem que isso viesse acompanhado de uma maldição, eu também iria ficar animado.
— Precisamos achar mais coisas sobre minha avó — desvio o assunto e me levanto com as pernas ainda fracas. Ter ficado em contato com o fantasma arrancou minhas energias. Aponto para a sacola e abro um dos Pringles, colocando logo uns seis na boca. — Igrejas costumam ter documentação de fiéis?
— Não sei, talvez?
Atravesso a catedral com o pote de batatinhas em mãos. Subo no altar e vasculho o púlpito como em um filme de investigação. Balanço a cabeça para os lados. Melissa esboça um sorriso. Levanta-se em seguida, mistura-se na escuridão e liga a lanterna do celular para enxergar melhor.
Fico encantado com a enorme cruz de ouro. Minha mãe costumava abominar a igreja católica. Dizia que eles não entendiam a Bíblia de verdade, inventando santos, nomes e burocracias para exercer a fé. Sempre achei hipocrisia da parte dela; a igreja que ela ia era cheia de besteiras que eles julgavam necessários para demonstrar a crença.
Encontro uma porta próxima ao altar. Está aberta. Sacudo o telefone jogando um feixe de luz no interior do cômodo. Há vários arquivos de metal cobertos de poeira.
— Achei!
Antes de ela vir eu já entro no cômodo. Jogo a luz sobre cada ponto do ambiente para ter certeza de que não terei nenhuma surpresa. Parece tudo abandonado há meses. Quando será que a igreja parou de funcionar?
A lanterna do celular de Melissa explode no meu rosto. Coloco a mão enfaixada na frente, os olhos apertados. Ela pede desculpa com um risinho. Desliga a luz.
— Estamos procurando alguma coisa em específico? — Melissa indaga.
— Qualquer coisa com o nome da minha avó.
Melissa assente em silêncio.
Ficamos divididos, de costas um para o outro, buscando nos arquivos. Coloco o pote de batatinhas fechado em cima do metal e faço uma varredura. Encontro muitos documentos de casamentos no armário de metal. Nomes desconhecidos saltam aos meus olhos. Passo para outro arquivo. Encontro nascimentos e batizados. A igreja parece ter funcionado como um cartório também.
As pessoas que viveram aqui tiveram vida. Embora tenham sido excluídas da sociedade comum, elas criaram seu próprio canto no mundo.
Um nome chama a minha atenção.
Márcia Andradas Silva
Pai: Desconhecido
Mãe: Maria Rosa Andradas Silva
Puxo a folha e me encosto na parede, lendo cada detalhe. Essa é a minha mãe. Um bebê nascido saudável, com peso e tamanhos ideais. Não encontro nenhum endereço ou informação que possa me ajudar a achar a casa da minha avó. Há uma anotação no fim do papel indicando que ela ficará sob os cuidados da tia, Hermínia Andradas Silva, pois Maria Rosa não tem condições mentais. Tenho vontade de rir, então aperto o papel e fecho os olhos respirando fundo.
— Achou alguma coisa, Ian?
Estico a folha na direção dela. Melissa tira da minha mão. Abro os olhos, encontro uma reação surpresa.
— Sua mãe nasceu nesta cidade?
— É o que parece. Só não sei se ela mesma sabia disso.
Ela me devolve a folha e aperta os olhos, pensativa.
— Melissa, é possível que uma criança seja oferecida a um demônio?
— Não faço ideia, por que a pergunta?
Seguro o queixo, os olhos fixos no papel.
— Minha mãe apresentou todos os filhos a Deus, no altar da igreja. Se ela nasceu nessa cidade, será que minha avó fez a mesma coisa, mas para seu demônio de estimação?
— É possível…, não é incomum o ato de apresentar ou oferecer uma criança recém-nascida em várias religiões.
— Será que é necessário um altar também?
Melissa dá de ombros. Suspiro. Jogo o papel dentro do arquivo sem muito cuidado. Ele não fará muita diferença daqui para frente. Minha mãe não vai precisar dele de qualquer forma. Pego o pote de batatinhas e viro os farelos dentro da boca.
Saio da sala de arquivos com o nariz coçando.
— Vou ficar um pouco mais — Melissa avisa quando eu chego na porta.
— Tem certeza? Não acredito que acharemos alguma coisa.
— Pode ser que não, mas vou procurar só mais um pouquinho.
Assinto em silêncio, fungando. Sento-me na primeira fileira de bancos, próximo do altar. Encaro a enorme cruz de ouro. O demônio tentou entrar na igreja, mas ou ele não conseguiu, ou estava apenas nos pregando uma peça. Ainda que a segunda opção pareça muito mais realista, não posso descartar a ideia de que o lado divino fez diferença.
As memórias passam num rolo projetor.
— Quando tiver pesadelos não precisa me chamar — disse minha mãe certa vez, eu devia ter uns doze anos. — Basta chamar o nome de Deus, de Jesus, que o mal vai embora.
— E se não for?
— Aí você me chama que eu o tiro na base da porrada — ela brincou, mas eu sabia que aquilo significava muita oração de joelhos como ela fazia quando meu irmão sofria da paralisia noturna.
Solto um riso anasalado, relaxando no banco.
Eu nunca consegui acreditar que aquilo faria diferença. Meus irmãos insistiam na ideia de que era apenas algo psicológico. Tentei melhorar a higiene do sono tantas vezes até que aceitei que talvez não pudesse fazer nada. Simplesmente abracei a insônia, o sono conturbado e as olheiras profundas demais para um adolescente.
Coloco a mão sobre as cicatrizes na coxa. Acho que é tarde demais para começar a pedir ajuda de Deus. E nem sei se adiantaria. Minha mãe morreu mesmo sendo fiel. Ainda assim, a possibilidade de a igreja ter feito alguma diferença na intromissão do demônio me faz pensar nos filmes de terror que assisti.
Volto ao altar, dessa vez em busca de acessórios no púlpito. Encontro um terço de madeira, enrolo no pulso direito como uma pulseira, a cruz fica pendurada a apenas alguns centímetros da minha pele. Acho outra menor e guardo no bolso. Desço do altar e vou até o que parece ter sido um confessionário. Entro no espaço dedicado ao padre. Há uma Bíblia de capa preta e letras douradas e uma agenda com capa de couro debaixo dela.
Sento-me onde o padre deve ter sentado inúmeras vezes. Ignoro o texto sagrado para me focar no que está escrito na agenda. As letras feitas em esferográfica azul estão um pouco apagadas pela passagem do tempo. A caligrafia é de alguém que passou muitos anos treinando. As primeiras folhas possuem anotações pessoais, sentimentos diante do desafio de estar cuidando das pessoas dessa cidade. Não é do começo da carreira do padre, pois ele mesmo adiciona uma anotação sobre não se lembrar mais de quantos anos faz isso e continua difícil.
Aos poucos as anotações tornam-se menos pessoais e mais resumos das coisas ouvidas no confessionário. Os moradores de Santa Mônica iam ali se confessar das coisas mais variadas. Uma série de culpados por coisa nenhuma.
Típico do cristianismo, debocho folheando.
Cresci em um lar onde muitas coisas eram condenáveis, embora minha mãe tentasse ao máximo não impor suas crenças sobre nós. Ela se culpava bastante por muitas coisas. Achava-se menos digna do perdão divino pela maconha usada na juventude, pelos relacionamentos fracassados com três homens diferentes que geraram filhos, e por outras tantas coisas que ela deve ter levado ao túmulo.
Aperto os olhos ao notar o nome da minha avó no topo de uma página.
Maria Rosa é um caso difícil. Ninguém gosta dela nessa cidade, tampouco escondem o sentimento. A Bruxa, como a chamam, e que Deus me perdoe, mas eles têm razão. As coisas que ela me contou são de assombrar a alma de qualquer pessoa. Hoje ela pediu perdão mais uma vez por ter vendido não apenas sua alma, mas a de sua família a um demônio. Os médicos falam para não levarmos a sério as coisas que ela fala, pois, sua mente já se distanciou totalmente da realidade há décadas, mas não posso fingir não ouvir tamanho sofrimento espiritual.
Após pedir perdão, ela me contou que tem sofrido com terríveis pesadelos, embora ela os tenha chamado de visões futuras. Deus não daria a esta mulher tamanho dom. Muito menos a perturbaria com estas imagens terríveis; ela acredita estar vendo como seus herdeiros morrerão. Contou que viu a irmã caindo morta de infarto e que uma enorme pedra passava por cima da filha. Talvez a primeira possa acontecer, mas com certeza não a segunda. Mas ela acredita que são símbolos avisando o destino terrível de cada um deles.
Seu medo, porém, vem acompanhado de um egoísmo ímpar. Alega que se está vendo a morte dos outros, a própria está próxima. Relata ter começado a ver coisas que não devia ver. Cita pessoas que morreram há diversos anos e que ainda estariam perambulando a cidade. Acredita ser culpa dela. Tudo é sobre ela. Quando perguntei o motivo ela disse que não podia contar. Pediu para ninguém entrar na casa dela quando morrer – e eu duvido que alguém fosse querer entrar lá de qualquer maneira.
Ela também citou uma chuva de facas, uma série de cordas escalando um prédio e um poço profundo como causa das mortes de seus outros herdeiros. Os três netos que sabe ter. Fiz as orações necessárias e passei quais ela precisava fazer em busca de perdão, mas não acredito que algumas Aves Marias e Pais Nossos serão suficientes para limpar o histórico desta pobre alma.
Começo a rir descontroladamente. As lágrimas gotejam sobre as páginas. Bato a cabeça na parede atrás de mim. Encaro o teto empoeirado do confessionário, a risada não para. Não consigo pará-la. Isso tudo não tem a menor graça, mas eu só consigo derramar o desespero dessa maneira; do contrário tenho certeza de que irei quebrar de tal modo que não conseguirei mais retornar a mim.
— O que aconteceu, Ian? — Melissa surge dentro da cabine.
Ela é tão linda, tão perfeita, tão ela.
Meu riso desvanece, deixo a agenda cair das mãos. Agarro a mulher diante de mim como se não tivesse mais tempo. Deixo a tormenta interior vazar pelos olhos. Melissa retribui o abraço, seus dedos afundam nas minhas costas. Está tudo bem quebrar dentro de seu abraço. Ela vai me fazer voltar. Sempre consegue fazer isso. Basta ela continuar comigo e eu posso voltar.
Fica em silêncio, meu choro é a única coisa fazendo barulho na igreja. Preciso desse momento. Aquela mulher da qual nunca soube mais do que o nome, viu como cada um de nós morreria. O infarto fulminante da minha tia-avó, a pedra na vesícula da minha mãe, a faca no estômago de Jonas, a corda no pescoço de Bruno. Só falta a minha morte, dentro de um poço – e eu nem entendo o significado desse símbolo.
Afasto o rosto, as lágrimas atrapalham a visão. Melissa enxuga minha tristeza com os polegares. Pisco e um novo mundo se abre. Seu sorriso leve me ilumina como um raio de sol.
— Eu não sei o que você encontrou — ela diz, a voz tranquila —, mas vamos achar uma solução.
Eu não acho que tenha solução, ela sabe que é isso o que penso. Após ler as anotações eu tenho certeza. Mesmo assim, eu concordo em silêncio.
O sorriso dela é o suficiente para me fazer acreditar em milagres.
Comentário do Autor
Quem me conhece sabe como tenho um fraco por personagens trágicos, sombrios e melancólicos. Ainda hoje é difícil para mim me divertir escrevendo textos que não beiram o angst mesmo que isso não esteja na moda. Por isso gosto tanto do Ian; ele tem todos esses elementos, mas ele não gosta de se mostrar assim. Ele não faz questão de contar a si mesmo dessa forma trágica; mas qualquer um que leia entende como ele é. Sinto que o Ian é um personagem muito importante para o futuro da minha escrita; mas ele não seria nada sem a Melissa. Esse outro lado da moeda, essa luz, mas cheia de sombras.
Escrever o Ian foi divertido pelo desafio: ele não gosta da pena que os outros tem dele, então jamais poderia mostrar-se em totalidade ao leitor. Ou a mim. Às vezes parece que ele tenta me enrolar contando coisas que pouco importam pro que está ocorrendo dentro dele. Traiçoeiro que só. Por isso, sinceramente, eu amo quando ele apenas quebra como no fim desse capítulo. São estes o momentos que posso ver claramente quem Ian é: um jovem trágico.