Você Não Está Só #18

Capítulo 18 — Limbo

Anteriormente…

Ian encontrou Melissa em uma casa em chamas e acabou descobrindo mais sobre o passado da moça, mas em troca acabou ficando mais perto ainda da morte…

o vazio que nada preencherá

é a morte que nos abraça

até nosso sangue congelar.

Limbo

Capítulo 18 — Limbo

Revisão: Bianca Ribeiro.

A primeira coisa que sinto é um frio fúnebre. Depois, o som de madeira crepitando próxima de mim. Lembro do incêndio, do menino derretendo na minha frente, no beijo ardente das chamas pelo corpo… em Melissa. Tento me levantar para ver se ela está bem, ainda de olhos fechados, mas não consigo. Há cordas invisíveis me prendendo ao chão. Meu coração acelera preenchido com medo, os pensamentos se espalham como metástase.

Onde estou? Onde ela está? Eu não posso deixá-la sozinha!

Insisto mais. Sacudo o corpo, ou penso ter sacudido. Não consigo nem mesmo abrir os olhos. Ofego, um arrepio perpassa cada parte do corpo, estremeço notando que não irei conseguir escapar. Lembro-me de ter saído de dentro da casa em chamas com Melissa no colo e então…

Merda, isto é um episódio de paralisia do sono.

Perceber isso não me ajuda a quebrar os efeitos, apenas me faz questionar o que está acontecendo no mundo real. Melissa ficou comigo ou voltou para o incêndio? As chamas ficaram contidas na residência ou nos alcançaram ao se espalharem? Ainda estamos dentro dos muros do Hospital Colônia Santa Mônica?

São várias perguntas, mas não consigo achar respostas. Meus batimentos cardíacos começam a acelerar em nervosismo. Por instinto meu corpo tenta se debater mais uma vez na esperança de quebrar o feitiço, mas apenas fica mais nervoso com a prisão. Ainda posso ouvir o crepitar muito próximo dos ouvidos, embora não sinta o beijo caloroso do fogo como aquele que causou os machucados que ardem em vários cantos.

Forço a abertura dos olhos, preciso encarar o pesadelo, mas o que encontro está longe de ser um pesadelo.

— Pensei que não ia acordar nunca, maninho — fala com a voz que me acostumei a não poder mais ouvir há cerca de dois meses. Meus olhos ficam marejados, preciso cerrá-los para evitar desabar em choro. — Não precisa chorar.

— Como eu poderia não chorar, Jonas?

Jonas está exatamente como esteve no momento do enterro, usando camisa social branca com os botões abertos no topo, calças sociais pretas e descalço. Abre um sorriso amarelo com aqueles dentes desalinhados, mas charmosos que lhe rendeu vários namorados ao longo da vida. Ergue-se com seus um metro e noventa de altura, para do meu lado e estende a mão direita cujo pulso está enfeitado com uma guia de São Jorge.

As cordas invisíveis são rompidas. Consigo segurar a mão do meu irmão mais velho como na infância, quando andávamos na rua. Jonas me coloca em pé, a expressão suave no rosto me faz lembrar dos seus melhores momentos. Encaro-o em silêncio. Tenho muitas perguntas na ponta da língua, mas não consigo selecionar nenhuma para iniciar o interrogatório. Por isso eu desisto desse momento esclarecedor e faço o que realmente quero desde que ele faleceu.

Eu abraço meu irmão mais velho.

Jonas está tão frio quanto esteve no dia em que o enterrei. Ainda assim, colocar a cabeça em seu peito me conforta como na infância. Agora não consigo mais segurar as lágrimas, elas desabam feito tormenta. Grito vazando os sentimentos dolorosos que floresceram em mim nos últimos meses. Jonas acaricia minha cabeça, envolve-me em seu abraço e fica em silêncio.

Pelos meus olhos sai a dor, frustração e tristeza contidas desde o momento em que recebi a notícia da internação às pressas após encontrarem-no esfaqueado, ao vê-lo no leito de hospital perdendo a vida aos poucos e ao encará-lo deitado em um caixão. Choro até esgotar as lágrimas que eu deveria ter derramado antes pelo meu irmão.

— Ian, você não devia estar aqui… — a voz dele soa fraca.

— Eu quero ficar com você — falo e desvio o rosto, estamos no que parece ser uma floresta sombria e cheia de galhos secos nas árvores sem folhagens.

— Você vai, mas não agora. Primeiro você tem que viver.

— Como eu posso viver com uma maldição?

— Ter uma maldição não é um atestado de óbito, ela só te ensina a enfrentar coisas que outras pessoas talvez nunca enfrentem.

— Neste caso é um aviso de morte.

 Meu deboche faz com que ele abra aquele sorriso orgulhoso de quando eu mostrava meus resultados positivos na escola. Sinto um calor estranho se espalhando no peito mesmo que este lugar seja frio.

— Viver é um aviso de morte, Ian.

Fico em silêncio olhando para cima como uma criança ouvindo um sermão.

— Mas isso não significa que não possa conviver com isso, não é?

Dou de ombros mesmo que aquilo faça sentido.

— É fácil falar isso já que nunca soube da maldição.

— Eu sempre soube, maninho.

Sinto minha alma sacudir. Pressiono as sobrancelhas, balanço a cabeça. Isso não pode ser verdade. Foi ele quem me ensinou a não acreditar no sobrenatural. Como assim sempre soube? Mordisco o lábio inferior, a raiva cresce dentro de mim.

Jonas suspira formando uma nuvem pálida na frente do rosto.

— As coisas eram diferentes quando eu nasci. Soube da maldição na infância por um acaso ao ouvir uma conversa que não devia.

— E mesmo assim não conseguiu “conviver com ela”.

— Não tive coragem para tentar. Eu sabia dela, mas fugi. Na religião, nas festas, no álcool, nos relacionamentos quebrados. Nunca encarei de frente, nunca tentei conviver com ela ou mudar o destino dela. Vivi de forma intensa sabendo que não duraria muito, mas não precisava ser assim.

— Se arrepende?

Jonas abre um sorriso constrangido.

— Não, mas você não precisa seguir meu exemplo. Diferente de mim, você tem um motivo para ser corajoso.

— Eu perdi toda minha família — debocho. — Qual seria esse motivo?

— Amor.

A resposta de Jonas faz meu coração estremecer. Lembro-me de vários momentos ao lado de Melissa. Das risadas na faculdade, das conversas reflexivas, dos cigarros lado a lado, dos cabelos rosados, do sorriso cheio de estrelas no rosto. Se eu desistir agora eu não poderei mais vê-la.

Eu quero continuar vendo, sentindo, rindo, beijando, amando Melissa.

Pensar nisso me faz sorrir de verdade.

— Você sempre sabe como me aconselhar.

— É o trabalho do irmão mais velho — ironiza.

Concordo em silêncio. Ele era ótimo nisso.

Presto mais atenção nos meus arredores. Estou em uma clareira, a fogueira crepitando no meio dela tem uma chama azul-ciano, as árvores se contorcem dentro da escuridão formando desenhos ameaçadores. Espio enquanto meu irmão se acomoda em um tronco de madeira, próximo ao fogo, notando como ele não tem aspectos fantasmagóricos.

— Que lugar é esse?

— Uma espécie de limbo.

— Então eu… morri?

Jonas me olha com seriedade e balança a cabeça para os lados.

— Ainda não. Por isso está assim.

Ele aponta para mim. Olhos minhas próprias mãos, elas estão com uma camada translúcida de luz. Isso é muito mais parecido com os fantasmas clássicos do que as coisas assustadoras que eu vejo.

— Por isso você não devia estar aqui.

— Alguma ideia do motivo de eu estar?

Jonas assente.

— Sua alma está condenada ao demônio do chapéu.

Ouvir isso da boca dele é diferente. Jonas nunca deu o braço a torcer. Sempre tentou me manter afastado desse mundo. Consigo entender agora, vendo-o neste plano espiritual, que ele fazia isso por medo do que eu faria comigo se soubesse que uma maldição corre em minhas veias.

Jonas sempre esteve cuidando de mim.

— Por que acha que é esse o motivo? Viu mais alguém?

— Sim…

— Quem?

O peito dói com a possibilidade de ver minha família outra vez.

— A mãe.

As lágrimas despencam sem que eu possa impedir. Fico de costas para que ele não veja meu rosto molhado. Ergo o queixo, tentando não me abater. Madeira queima mais alto atrás de mim. Jonas vem em minha direção, seus passos são suaves sobre toda a terra e folhas mortas. Encosta em meu ombro, mas continuo sem encará-lo.

— Eu quero vê-la, Jonas.

— Não acho que seja uma boa ideia…

— Para você é fácil falar isso, não precisando viver sem quem ama.

— Eu vivo sem você.

Encaro-o com os olhos arregalados. Seu rosto tem um sorriso triste. Espíritos também possuem sentimentos. Desvio os olhos, não quero ficar encarando a dor dele por tempo demais. Sinto que se fizer isso vou acabar afundando para sempre.

— Aconteceu algo com ela?

— Ela foi a primeira de nós, maninho. Quando um espírito fica remoendo tanta negatividade ele tende a se transformar. Acho que você não vai querer encontrá-la na forma que ela está agora.

— Como isso não aconteceu com você?

Jonas dá de ombros.

— Acho que pude aceitar com mais facilidade. Eu não fui pai, vi vocês crescerem para se cuidarem sozinhos e nos últimos tempos nem estava ajudando mais tanto. Além disso, notei que precisava estar inteiro para quando fosse a vez de vocês dois — debocha.

— Então o Bruno também está aqui?

— Não…, ele não está.

Franzo o cenho, confuso.

— Bruno não veio para cá, eu não sei onde ele está.

— Você procurou? — Jonas confirma.

Baixo a cabeça, pensativo, pois isso não faz o menor sentido. Sento-me num dos troncos ao redor da fogueira. Bruno apareceu no mundo humano, distante da cidade amaldiçoada. Seja lá onde ele esteja, ele ainda tem a possibilidade de fazer contato comigo, assim como aqueles que estão presos dentro dessa cidade.

Respiro fundo. Seguro o queixo entre os dedos. Tento juntar as peças, porém, ainda me falta muito conhecimento sobre o mundo espiritual. Queria estar com Melissa neste momento.

Procuro na mente as informações que tenho sobre crenças, mitos e as coisas que eu pesquisei na adolescência. Algumas religiões acreditam em uma condenação às almas daqueles que ceifam a própria vida, assim como alguns mitos indicavam que eles viravam vampiros. Como posso aceitar que uma é realidade e a outra não quando tudo parece possível?

Começo a sentir um pico de calor se espalhar pelo corpo. Talvez as chamas finalmente tenham começado a me aquecer. Jonas coça a garganta. Ergo o rosto e ele aponta de novo para mim. Quando levanto as mãos quase não consigo vê-las. Estou desaparecendo deste mundo.

— Ainda não é sua hora — ele reforça.

Encaro o terço que está no punho. Eu consegui fazer dois fantasmas desaparecerem, mas aquilo foi certo? Melissa chamou de fazer passagem, porém, o que exatamente isso significa?

— Eu vou te tirar daqui — anuncio e ele fica incrédulo. — Não sei como, mas você sairá desse limbo. Prometo.

— Acima disso, Ian, eu só quero que você se concentre em uma coisa.

Aperto as sobrancelhas esperando o que ele tem a dizer, mas ao invés disso ele vem em minha direção, se agacha e me abraça. Seu corpo é frio e causa um arrepio na espinha.

— Viva, maninho.

Envolvo-o em meus braços e encosto a cabeça em seu ombro. Viverei, tento dizer, mas as lágrimas criam um nó na garganta. O crepitar da fogueira começa a se distanciar.

— Eu te amo, Jonas — sussurro, embargado.

— Eu também te amo, Ian.

O som da fogueira desaparece, apenas o silêncio permeia meus sentidos.

Não sinto mais o frio do corpo de Jonas. Não sinto mais o calor da luz. Não sinto mais nada. Não, eu ainda sinto algo. Lágrimas se perdem na imensidão vazia. A escuridão me abraça como uma velha amiga. Eu vou salvar todos vocês, prometo dentro de mim, como se eles fossem capazes de me ouvirem… como se eu soubesse o que estou fazendo.

Um ponto cor de rosa surge nas trevas. Eu me agarro a esta visão, mergulhando nas sombras. O brilho começa a aumentar à medida que fico próximo. Impulsiono meu corpo mais uma vez, com mais afinco. O brilho rosa toma conta de todo o meu horizonte e eu escuto uma última vez a voz doce da pessoa que tanto amo chamar meu nome.

Comentário do Autor

Eu chorei escrevendo, editando e preparando esse capítulo.

GOGUN.