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Você Não Está Só #19
Capítulo 19 — Obrigado por me salvar...
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Anteriormente…
Após ficar perto demais da morte e conversar com um de seus irmãos, Ian aceitou que deve seguir tentando viver, mas o que isso significa efetivamente?
você é minha salvação rosa
e eu sou seu idiota.
Capítulo 19 — Obrigado por me salvar…
Revisão: Bianca Ribeiro.
Abro os olhos no susto. Pisco devagar. Consigo mexer os dedos dos pés e das mãos. Não estou preso em outro episódio de paralisia do sono. A única luz no ambiente parece vir do chão, fazendo com que um teto mofado projete várias silhuetas confusas. Fico sentado, levo a mão ao olho direito, esfregando-o.
Eu quase morri, penso nas últimas palavras de Jonas e sinto o peito esquentar. Um sorriso bobo floresce. Baixo a mão, olho ao redor. Volto a ficar sério. Estou em algum quarto de hospital em cima de uma maca suja, vários equipamentos comuns se espalham desorganizadamente no cômodo, a maioria coberta de poeira e teias-de-aranha.
Agora tenho certeza de que ainda estou em Santa Mônica.
Jogo as pernas para fora da maca e sinto as panturrilhas arderem. A primeira coisa que noto é como tenho vários rasgos espalhados nas roupas. Puxo as calças para cima, encontro curativos nas pernas. Também foram feitos primeiros-socorros nos cotovelos, ombros e os curativos da mão esquerda foram trocados.
Quem fez isso não sabia como fazer, sorrio com o significado disso.
Uma luz forte bate em meus olhos, coloco a mão na frente do rosto. Um brilho rosado espirala dentro do clarão. Os passos se apressam em minha direção e eu nada faço para impedir o que virá a seguir.
Melissa me abraça apertado, os cabelos me afogam. Ela está com cheiro de fuligem e produto de limpeza, mas neste momento é o melhor cheiro do mundo porque está nela. Devolvo o abraço, mas não tenho muita força para apertá-la. Assim que tento os nervos puxam diversos pontos do corpo.
E nem isso me impede de mergulhar nos seus braços.
— Pensei que ia te perder… — Melissa sussurra.
— Eu prometi que ficaria contigo, não prometi?
Coloco a mão em sua cabeça. Olhamos no fundo dos olhos um do outro. Deslizo os dedos pelos seus cabelos, toco no curativo em sua bochecha e encaixo a mão em seu rosto sentindo a maciez da bochecha, o calor da vida. Desenho círculos em sua bochecha com meu polegar. Melissa concorda com a cabeça, as lágrimas insistentes tentando cair.
Detesto vê-la chorando, ainda mais por minha causa. Enfrentar essa maldição é também evitar que ela sofra mais. Enxugo uma lágrima que escorre em sua bochecha. Deposito um beijo tenro em sua testa, demorado e caloroso. Depois, sorrio para mostrar que está tudo bem agora. Ela corta a distância entre nossos lábios com um beijo ansioso. Neste momento tenho medo de ter realmente morrido e estar no Paraíso.
— Você é mesmo um idiota — ela fala batendo as mãos no meu peito.
— Seu idiota.
— Meu, só meu.
Concordo com a cabeça. Ela desvia o rosto, envergonhada. Seguro seu rosto entre os dedos e a viro para mim. Trago-a próxima pelo queixo. Volto a beijá-la, agora mais lento. Aproveito a maciez dos lábios, o toque molhado da língua, encosto nossos corpos. Seu calor me atravessa em ondas.
— A gente tá no meio de um hospital abandonado, Ian — sussurra.
— Eu sei, mas é difícil não te querer.
— Você já me tem — ela me olha com um sorriso.
Meu coração esquece do próprio ritmo.
Melissa dá as costas para mim. A lanterna era na verdade seu celular que agora ela desliga porque há outra luz no cômodo. Procuro meu telefone só para entender que é o que foi deixado no chão. Sento-me na maca, boto as mãos sobre o colchonete. Não sei como ela conseguiu me colocar aqui em cima, porém, posso ver em seu rosto o cansaço.
— Quanto tempo fiquei inconsciente?
— Umas dez, doze horas. Eu não sei, o tempo aqui é estranho.
— Como assim?
— Olhe você mesmo no celular.
Franzo o cenho, sem entender. Pego ele do chão, ainda iluminando o ambiente, mas agora mirando a luz no chão. Assim que a tela acende eu percebo. O relógio parou na hora que chegamos à cidade. Ergo o rosto esperando alguma explicação, ela é a especialista em assuntos sobrenaturais, mas ela apenas balança a cabeça para os lados.
— Acho que essa cidade está tão submersa no espiritual que o tempo flui diferente. Agora faz mais sentido o letreiro na entrada da cidade. “Não há mais tempo” é realmente um slogan estranho para um hospital, mas propício a uma cidade amaldiçoada.
— Não há mais tempo? Na entrada da cidade?
— Sim, no arco de pedra.
Solto um riso debochado que faz ela cruzar os braços.
— Qual a graça?
— Eu li outra coisa. Para mim estava escrito “você não está só”.
Ficamos calados por vários segundos. As coisas nessa cidade são ainda mais estranhas do que pensei. Porém, começo a notar que até as coisas espirituais possuem uma lógica. Apoio o queixo entre o indicador e polegar e começo a juntar as peças, olhos miram o chão.
Quando chegamos na cidade e conversamos com o padre ele havia deixado implícito a possibilidade dessa cidade inteira estar sob os domínios daquele demônio de chapéu. Agora, após a conversa com Jonas, eu acho que entendi melhor o motivo disso. A forma como esse lugar se altera para traduzir dores alheias faz ainda mais sentido.
— Estamos no limbo.
— Do que você está falando? — Melissa fica atônita.
— Conversei com Jonas enquanto estava inconsciente — falar isso parece um absurdo, mas ela apenas fica séria e escuta. — “Uma espécie de limbo”, foi como ele chamou o lugar onde nos encontramos. Acredito que quando passamos pelo arco de pedra de Santa Mônica nós entramos em uma espécie de limbo também.
Concluo a explicação me sentindo idiota por falar sobre essas coisas parecendo ter tanto conhecimento. Melissa, porém, parece ter absorvido as informações e está tentando juntá-las no quebra-cabeças que tem montado desde o momento em que enviei uma mensagem falando que estava enlouquecendo.
A mensagem de boas-vindas diferente para cada um. Aquilo dito pelo padre sobre as almas dos moradores. O monstro com aparência de nossos irmãos. O fantasma se escondendo com medo, a tentativa do demônio em impedir que soubéssemos de alguma coisa mais de uma vez. A casa onde o irmão dela faleceu.
Nada disso poderia acontecer no mundo real… poderia?
— Por isso você fez a passagem dele — Melissa solta como se fosse a coisa mais óbvia do mundo, mas assim que me encara abre um sorriso engraçado e mexe as mãos pedindo calma. — Você é um médium, Ian. Isso é claro como a luz do dia. Só que existem diferentes tipos e você parece ser daqueles que ajudam os espíritos a viajarem para o destino final deles, para o Paraíso, digamos assim.
— Não faço ideia de como fiz isso.
— Eu também não sei, mas você fez. Mais de uma vez.
O rosto dela fica abatido.
Fiz aquilo com a figura do seu irmão na casa em chamas.
— Aquilo não era seu irmão, Melissa.
— Eu sei agora — avisa, desviando os olhos. — Ele era um espírito obsessor na forma do Guilherme.
Não entendi o termo, mas concordo em silêncio.
— Mesmo assim você fez a passagem dele. Não é fácil fazer algo assim.
— Eu só estava tentando te proteger.
Melissa mostra um vislumbre do sorriso mais lindo do universo. As sardas parecem iluminar como o céu noturno de verão. Como uma mulher pode ser linda até nos momentos mais sombrios? Olho para seus cabelos rosados da mesma tonalidade da luz que me ajudou a sair do limbo.
— Que sorriso é esse? — Melissa pergunta, envergonhada.
— Obrigado por me salvar, Melissa.
— Eu teria queimado naquela casa se não fosse por você. Quase não consegui te carregar até aqui, mas só estava retribuindo o que fez por mim.
— Melissa, você tem me salvado todos os dias desde que nos conhecemos. Em cada sorriso, cada história contada, cada abraço. Cada mensagem que faz meu celular vibrar e reverbera no meu coração — eu me aproximo e passo o polegar pela sua bochecha —, você me salva só por existir.
Os olhos dela brilham como uma supernova. Quero beijá-la, mas muito mais do que isso, quero deixar escapar três palavras proibidas. Aquelas que só posso deixar escorregar quando tiver certeza de que não irá quebrá-la em mil pedaços.
Deposito um beijo demorado na testa dela.
— Estamos juntos, entendeu?
— Juntos — Melissa concorda.
Sento-me na maca e começo a observar os curativos. Depois dessa viagem terei de ir ao hospital com toda certeza. Também vou ter que comprar roupas novas. Suspiro, detesto fazer compras. Levanto o rosto na direção dela para me focar em algo melhor.
— Como está a situação lá fora?
— Estranha. Muito estranha.
— Monstros? — Ela nega. — Fantasmas?
— Vários. Pessoas com roupas de internação, outras com roupas normais. Acho que os espíritos foram se acumulando no hospital porque era a referência deles em vida.
— Então os espíritos seguem os padrões que tinham em vida?
— Acredito que sim, em certo nível. A verdade é que os espíritos não deveriam ficar presos em planos assim.
Concordo com aquilo, embora não entenda o motivo. Após morrer ninguém devia ter que continuar enfrentando sofrimento algum. A morte supostamente é um descanso, não uma tortura. Pelo menos é nisso que acreditei a vida inteira. É por isso que ela foi tão amigável por muito tempo.
— Estamos cercados de fantasmas, então?
— De certa forma, sim.
Ótimo, debocho, suspirando.
— Você perdeu mais alguém? — a pergunta soa insensível, mas eu preciso saber exatamente com o que podemos ter que lidar daqui em diante. Melissa sabe cada morte que ocorreu próxima de mim.
— Minha avó materna. Ela teve câncer de mama, tratou e ocorreu metástase nos pulmões, pescoço e cérebro.
— Quantos anos você tinha?
— Uns 13 ou 14 — Melissa toca a ponta do indicador no queixo, pensativa.
— Sinto muito.
Meneia a cabeça, a expressão em seu rosto é tranquila.
— Talvez o que eu diga seja horrível, pois com certeza foi uma merda conviver com a doença, mas para mim foi um tempo de despedida que eu aproveitei ao máximo.
Concordo. As mortes que eu encarei foram todas repentinas. Mesmo encarando os corpos adormecidos nos caixões, não senti que houve um encerramento. Sinto um pouco de inveja dela por isso, mas tento não focar demais nesse tipo de coisa.
— Quantos anos você tinha quando seu irmão faleceu?
— 12.
A resposta é afiada como uma faca. Melissa não quer falar disso. Sinceramente, eu também não. Gostaria de evitar falar de coisas difíceis, mas essas coisas parecem ter uma importância ímpar nesta cidade. É melhor conhecermos as fraquezas um do outro antes que sejamos engolidos pela malícia deste lugar.
Respiro fundo, preciso pisar um pouco mais nesse acelerador.
— Aposto que fez o possível para salvá-lo.
— Seria melhor se eu não tivesse começado o incêndio.
Melissa vira o rosto para não me encarar.
— Quer me contar como foi?
— Não, mas é melhor que saiba logo.
Ajeito-me na maca, mostro preocupação. Melissa respira fundo, tomando coragem para me contar essa parte de sua vida. Escuto passos caminhando do lado de fora do quarto. Tento ignorar a sensação de que tem alguma coisa perigosa lá fora, pois isso também significa que estamos nos aproximando do objetivo.
Mesmo assim o frio que começa a se espalhar no cômodo é terrível.
— Vazamento de gás. A perícia concluiu que foi isso que provocou a explosão quando meu irmão acendeu as luzes da cozinha. Em um piscar de olhos a casa foi consumida pelas chamas.
As lágrimas enchem seus olhos. Tentando parecer mais forte do que realmente é ela os enxuga antes de desabar. Aperta os lábios, olha para os lados, depois recomeça:
— Eu estava no segundo andar. Desci correndo, chamando por ele, desesperada porque havia escutado ele descer as escadas minutos antes. Encontrei seu corpo caído no meio do fogo. Ainda escutei sua voz baixa, mas nunca consegui decifrar o que ele falou…
Ameaço me levantar e ir até seu encontro, mas ela levanta a mão interrompendo minha ação. Ajeito-me na maca, em silêncio. Às vezes o que precisamos não são de palavras, mas de espaço. Sorrio amarelo, pensando em todas as vezes que me incomodei com os colegas de classe tentando demonstrar essa mesma forma de preocupação. Eu sou um hipócrita.
— Juro que eu tentei, Ian, mas não dava. Era fogo demais. Essas cicatrizes são prova disso, eu quase fui engolida pelo fogo. Só me restou… correr. Pedi ajuda da vizinhança, os bombeiros chegaram depois, meus pais ainda levaram mais uns minutos. Guilherme faleceu no local.
— Você não teve culpa.
— Eu fui a última a usar o fogão — fala com um riso debochado.
— Isso não te faz culpada, foi um acidente, Mel.
Sacode a cabeça para os lados.
— E daí? Acidente ou não, a culpa é minha. Meus pais me odeiam, hoje talvez menos, mas na época… eu matei o filho deles! — Melissa sacode os braços, as lágrimas perdem o controle, a névoa fica mais densa dentro do quarto. — Se eu tivesse prestado só um pouquinho mais de atenção nada disso teria acontecido. Eu tentei pedir desculpas, pedi perdão, mas nada vai trazer ele de volta. E eu tentei trazê-lo, Ian, céus você não sabe como eu tentei…
Desta vez eu não ameaço me levantar. Eu salto e a abraço apertado. Aconchego sua cabeça em meu peito e faço um cafuné lento enquanto ela se encolhe chorando.
Melissa se recompõe aos poucos, se afastando de mim para ter seu devido espaço, encolhendo-se mais dentro das roupas. Limpa as lágrimas, funga. Eu fico encarando a porta, os sons atrás dela. O ambiente ao nosso redor está muito mais pálido e frio.
— Às vezes eu te invejo, sabia? — Melissa fala.
Paro o que estou fazendo e a encaro confuso.
— Você consegue ver seus irmãos.
— Não é como na novela das seis, eles nem sempre são translúcidos e bonitos — ironizo.
— Pelo menos você os viu.
Ela tem razão. Por mais assustador que seja saber que um está preso dentro de um limbo e o outro vaga pelo mundo com uma forma monstruosa… eu consegui vê-los. A minha última lembrança deles não é de seus rostos endurecidos no formol, deitados em seus caixões humildes.
— Se eu pudesse eu te passava esse “poder”.
— Isso não é um poder, mas um dom.
— Prefiro chamar de maldição. Neste exato momento sinto como se estivesse febril, meus ossos estão gelados e os calafrios não param. E isso, infelizmente, sempre foi assim. Em hospitais, igrejas e vários outros lugares. Não é nada bonito como as histórias fazem parecer.
— Você não acha incrível poder sentir coisas que os outros não sentem?
— Se elas fossem boas, sim, mas não é o caso, é?
Melissa concorda, terminando de enxugar as lágrimas. Um estalo ocorre na porta. Puxo-a pela mão para trás de mim, boto o terço na frente do corpo como fiz na casa em chamas.
Quem abre a porta é uma senhora de idade, os cabelos brancos em coque, as roupas hospitalares largas demais para seu corpo magro. Ela sorri com os dentes necrosados. Seus olhos são duas bolhas branco-leitosas e sua pele craquela em vários pontos, alguns buracos se destacam na bochecha e nos braços magricelos.
— Desculpa atrapalhá-los, mas vocês sabem onde está o doutor?
Comentário do Autor
Aprender mais sobre a Melissa através da voz dela é um dos meus momentos favoritos dessa história. Temos desde o começo o Ian dizendo como está disposto a não saber certas coisas, mas com uma ponta de curiosidade a todo instante. Então temos a mãe dele sugerindo uma tragédia e finalmente descobrimos mais sobre a tragédia através do demônio e suas assombrações. Neste capítulo, porém, ela finalmente recebe espaço para contar sobre seus fantasmas — e isso mostra muito sobre em que estágio se encontra o relacionamento desses dois. Por isso é um dos meus momentos favoritos.
Quando comecei a rascunhar a ideia desse livro ele seria muito mais voltado ao horror, porém, aos poucos, fui me sentindo profundamente conectado e interessado no romance desses dois. Queria ver quanto ele podia ser gado dela e quanto ela poderia ser essa guerreira por ele. Quando notei já não podia mais chamar de “livro de horror” e eu também não queria mais que fosse, mesmo estando construindo uma carreira com obras desse gênero.
A vida tem dessas coisas.