- Quarto Assombrado
- Posts
- Você Não Está Só #20
Você Não Está Só #20
Capítulo 20 — Dentro da Névoa

Anteriormente…
O casal continua a investigação após tantos obstáculos, agora, porém, eles também precisam lidar com mais moradores fantasmas…
o medo de morrer
não é maior do que
o medo de perder você.
Capítulo 20 — Dentro da Névoa
Revisão: Bianca Ribeiro.
O silêncio toma conta do quarto. A senhora fica nos olhando com aqueles enormes olhos branco-leitosos, a testa vincando em clara confusão. Ela não parece ter notado a situação.
Troco olhares com Melissa. Ela não parece saber o que fazer. Encaro a senhora e abro meu sorriso mais simpático, aquele ensaiado em sala de aula durante a aula em que encenamos como seria receber um paciente antes de entrar no consultório.
— Muito prazer, eu sou Ian e essa é Melissa, como você se chama?
— Benta.
A voz dela chacoalha.
Melissa leva a mão ao peito, mas antes que eu possa perguntar o que aconteceu ela está sorrindo e indo até a senhora. Vê-la assim me faz compreender o motivo de ela estar no curso de psicologia. Sabe acolher as pessoas como ninguém. Mais importante, ela parece gostar disso. Fazer de maneira natural.
Abro um sorriso e assisto a forma como ela guia a senhora a se sentar. Trocam algumas palavras. Melissa explica que é de uma universidade próxima e está estudando psicologia. A senhora fica perplexa com aquilo, pois ela parece nova demais para estar na faculdade.
Cruzo os braços, não tenho acréscimos a fazer.
— Você sabe o que está acontecendo aqui, dona Benta?
A senhora balança a cabeça para os lados.
— Qual a última coisa que a senhora tem lembrança?
— Eu estava doente. Pneumonia, o médico disse. Ah, estava frio. Muito, muito, mas muito frio mesmo. Ainda está, não acham? — Concordo com a cabeça, desde que ela surgiu a névoa dentro do quarto ficou muito mais densa, assim como o frio sobrenatural que a acompanha. — Então eu fui dormir… e nada mais. Acordei faz pouco, mas não estou mais sentindo a fraqueza de antes.
Melissa me olha sobre o ombro, as sobrancelhas vincadas. Assinto em silêncio. A senhora diante de nós dois está morta. Não apenas isso, mas ela ainda não sabe que faleceu. Assim como outros fantasmas nessa cidade, ela acabou sendo trazida a este mundo, seja ele um limbo ou a realidade, e agora está tentando compreender o que ocorreu.
Levanto-me, passo as mãos pelas coxas, sinto o terço roçar na calça. Ambas desviam a atenção para mim. Melissa volta a esbanjar o sorriso de simpatia mais brilhante do universo.
— Ele é estudante de medicina — mente, pendendo a cabeça para o lado.
— Você parece ainda mais jovem!
— Alguns meses de diferença.
Tento mostrar um belo sorriso, mas assim que fico perto delas, Melissa fica próxima do meu ouvido e sussurra a coisa mais assustadora de todas:
— Ele está próximo.
Meu coração quase capota para fora das costelas. Assinto, fingindo costume, tentando não demonstrar os verdadeiros sentimentos que isso me traz. Remoer negatividade faz mal aos espíritos. Foi isso que ouvi de Jonas. Não tenho a menor ideia do que isso pode causar a um fantasma como este, mas prefiro não arriscar.
Coloco a mão direita no ombro da senhora. Sinto uma energia fluir pelos meus dedos, criando fios luminosos ao redor deles. A mulher olha de canto, também notando que alguma coisa vai acontecer. Depois, ao me encarar no fundo dos olhos, ela parece assustada.
— Você é mesmo um médico?
— Acredito que posso ser chamado assim — comento, voltando a sorrir.
Lembro do que fiz com os outros fantasmas. A forma como fiz essa luz pulsar através de mim para realizar a passagem deles. Fios luminosos ficam maiores e enlaçam meu pulso. Melissa chamou isso de “fazer a passagem”, porém, quando penso nesse termo só consigo me lembrar de Jonas naquele ambiente inóspito.
— Você não é médico do corpo, né, filho?
— Não. Assim como ela, sou da alma.
A senhora abre um sorriso que seria muito mais gentil não fossem os dentes podres da morte. Retribuo o gesto, meu coração fica mais calmo. Os fantasmas nessa cidade não são monstros como aquela criatura que eu matei ou como o espírito tentando atazanar a mente de Melissa.
Esses fantasmas são resquícios de histórias deixadas para trás.
— Eu não estou entendendo…
— Vai ficar tudo bem, dona Benta — Melissa coloca a mão no outro ombro da senhora fantasma. Seu toque, porém, faz cinzas deslizarem ao chão. — Estamos aqui para ajudá-la a achar o caminho.
— O caminho…
Os olhos branco-leitosos se distanciam, como se sua mente estivesse viajando em caminhos desconhecidos. As mãos se juntam envergonhadas. Cinzas começam a cair delas. Seu tempo está acabando. Fecha os olhos, concordando.
— Vai doer?
— Eu não sei — confesso.
Imagino a luz tomando conta do corpo dela e assim acontece. Ela deve ter vivido décadas nesta cidade, afastada do mundo como uma criminosa. Aparenta ter sofrido de hanseníase em algum momento, pois suas mãos possuem marcas claras da infecção. Mas isso não é desculpa, penso, meu coração não acelera, mas aperta. Ninguém devia ser esquecido assim, reflito, lembrando não apenas dos fantasmas que ouvi dentro da cidade, mas das histórias ensinadas na faculdade.
Leva alguns segundos, mas todas as veias enegrecidas pelo corpo do fantasma começam a brilhar em amarelo-dourado. Uma onda de calor passa pelo meu braço direito. A névoa ao nosso redor é afastada alguns centímetros. Melissa aperta o ombro do fantasma que volta a abrir os olhos, mas dessa vez eles não são pálidos; eles são azuis.
— Obrigada — ela sussurra.
Um clarão toma conta do corpo dela, seu corpo inteiro se desfaz em cinzas luminosas que lembram pétalas. Elas dançam ao redor do meu braço e são dissipadas no ar. Meu braço dói, queima, mas o mais intenso é a avalanche de sentimentos que rasga meu coração. As lágrimas desabam feito uma tempestade e eu levo a mão ao peito com dor física. É tão doloroso quanto enfrentar todos os lutos de uma só vez. Eu só quero chorar, chorar e chorar.
Melissa me abraça apertado. Encosto a cabeça em seu ombro e deixo toda a dor vazar pelos olhos sem me deixar ser levado ao desespero para não chamar atenção indesejada. Em meio a turbulência de sentimentos, tenho pequenas imagens vívidas de um hospital em atividade, um médico grisalho, enfermeiras cansadas e os sons de um monitor de sinais vitais. É apenas um lampejo, mas fica em mim como uma memória.
— Isso é tão difícil — assumo.
— Só consigo imaginar, Ian, mas você fez tudo certo. Tenho certeza de que a alma daquela senhora está em paz agora.
Eu espero que sim, o cenário em que Jonas estava não era agradável.
Preciso me sentar logo em seguida. Meu corpo pesa uma tonelada, as lágrimas insistem em rolar pelas bochechas mesmo comigo sério. Procuro a carteira de cigarros nos bolsos. Melissa pega nas roupas dela, bate na coxa e me entrega um. Acendo com uma tragada lenta que me faz sentir a fumaça penetrando fundo nos pulmões.
— Ele ainda está por perto?
— Sim. Em algum lugar do hospital.
Assopro a fumaça que toma conta do espaço onde antes tinha névoa. Ainda não entendo o significado pleno dela, mas começo a entender seus padrões. Assim como posso ver o motivo dele estar neste hospital.
Estamos perto de descobrir algo.
— Consegue dizer exatamente onde ele está?
— Eu não sou um GPS espiritual — Melissa debocha.
Dou de ombros. Enxugo as últimas lágrimas presas nos olhos. Todo o sentimento se transformou num espaço vazio, aquele que bem conheço após chorar noites sem fim e abrir estradas nas minhas pernas na adolescência. Embotamento é o nome técnico, embora eu não saiba se vale a pena ficar pensando assim após tudo o que vivi nos últimos dias.
Uma tragada. Estamos perto de algo, mas de quê? A única coisa que podemos achar é o endereço exato dela. Será que ele teme tanto assim? A simples ideia de impor medo a um demônio me faz rir anasalado, a fumaça escapando pelas narinas. Ele está apenas nos querendo colocar medo, é a resposta mais lógica.
— No que está pensando, Ian?
Levanto o rosto e encaro a face mais bela do mundo. Os cabelos rosa emoldurando o rosto. As sardas brilhando feito estrelas. Os olhos curiosos que sempre parecem à espera de alguma coisa.
Eu amo essa mulher, mas não posso falar isso.
Outra tragada.
— Ele está tentando nos colocar medo. Talvez esteja com outro espírito estranho para nos atrapalhar. Caso sua avó apareça, minha mãe, irmão, não importa… temos que seguir em frente.
— Tem razão. O problema é que o hospital está uma bagunça, não será fácil acharmos alguma coisa.
— Só precisamos perguntar as direções, não é?
— Para quem? — Melissa sorri nervosa.
— Aos fantasmas.
Pressiono o cigarro na parede até extinguir a chama.
— Quem diria que eu ouviria isso sair da sua boca — Melissa brinca.
— Estou tão surpreso quanto você. — Levanto-me com as mãos no ar.
— Mas você está mesmo bem para isso?
Assinto, mas sei que ela já notou. Ainda estou um pouco tonto. Minhas pernas estão fracas, o estômago ronca baixinho. Todas as vezes que fiz a passagem de um espírito terminei exausto, mas ela não precisa saber disso.
— E você? — Melissa aperta os olhos. — Você está bem para fazer isso?
— Quer saber se não estou abalada o suficiente para me matar nos monstros como quase me matei nas chamas? Não estou. Já passou. Eu não estou mais triste.
Gostaria de rebater. De mostrar a ela que está tudo bem ficar triste, porém, não temos tempo. Não posso correr o risco de ficar de conversa com aquele demônio perambulando nossos arredores como um abutre. Preciso achar soluções para sairmos daqui com vida e com as informações necessárias, inclusive como afastar essa maldição de mim.
Observo a mão direita, há chamuscados pretos sobre a pele, muito parecido com os resquícios de fumaça. Esfrego o polegar na tentativa de tirar essa sujeira. Parece estar tatuado na pele, pois não sai de jeito nenhum. Abro um sorriso debochando de mim mesmo; mais uma cicatriz para a coleção.
— Eu fiz a passagem de dois espíritos “bons” e de um obsessor — comento, ainda olhando a mão. — Seria possível fazer o mesmo com um demônio?
— Não sei, Ian. Isso não seria um exorcismo?
Dou de ombros.
— Minha mãe falava que todos temos autoridade para expulsá-los desde que façamos isso em nome de Jesus. Nos filmes, porém, é muito mais burocrático. E, no fim do dia, nada do que fiz se lembra com nenhum dos dois. Talvez exista uma forma…
— Talvez seja arriscado demais fazer isso. Há certos tipos de espíritos que não ficam muito felizes em ser enxotados.
Caminho até a porta, abro uma fresta e olho para fora. Está escuro, mas posso ver uma silhueta a esmo no meio das trevas. Usa roupas de paciente e seus passos são duros.
— De alguma forma terei que expulsar esse encosto — digo, voltando a olhar dentro do quarto em que estamos. — Tem um paciente no corredor, o demônio parece próximo?
— Não…
Abro a porta sem pensar duas vezes. Chispo com a boca, o que faz com que o fantasma olhe em minha direção. É um senhor de idade, magro e com o rosto inchado, olhos branco-leitosos e cabelos em falta. A pele cinzenta se destaca pela enorme quantidade de buracos.
— Quem é você?
— Ian, prazer. Onde o senhor está indo?
— Ian… Ian… Não, não, você é o neto da Bruxa!
O senhor corre para dentro da escuridão antes que eu possa ter mais informações. Pelo visto a minha família inteira é malvista nessa cidade abandonada. Minha avó deve ter sido uma pessoa horrível. Melissa surge segurando minha mão direita e me puxa com ela para a direção contrária.
— Ele está naquela direção — fala, assustada.
Olho para trás, preocupado, pois o frio começou a fazer os ossos das minhas pernas doerem outra vez, como uma febre fatal e o que encontro é milhões de vezes pior. A névoa está avançando em nossa direção como uma tempestade e dentro dela há diversos olhos vermelhos nos assistindo fugir em passos apressados.
Um par é do demônio de chapéu, mas e os outros? Viro para frente, correndo ao lado de Melissa. Escuto o que parece ser rosnados atrás de nós. Evito olhar novamente, preciso achar uma forma de protegê-la. Parte da névoa passa por nós serpenteando as paredes. Passo os olhos pelo ambiente rapidamente. Encontro uma porta aberta.
— Desculpa, Mel — falo e ela me olha muito, muito confusa.
Empurro ela com um jogo de corpo, ouço-a protestar e fecho a porta, segurando firme na maçaneta com a canhota. Ela tenta abrir a porta, mas impeço com um enorme sorriso, enquanto a névoa termina de cobrir tudo.
Comentário do Autor
Ian tem um péssimo hábito de bancar o herói…