Você Não Está Só #22

Capítulo 22 — Descobertas

Anteriormente…

Ian finalmente se declarou para Melissa, mas agora eles precisam achar uma forma de sobreviver ao que está acontecendo…

a verdade liberta

e nos prende eternamente

Descobertas.

Capítulo 22 — Descobertas

Revisão: Bianca Ribeiro.

Respiro com dificuldade encarando as trevas acima de mim. Levanto o braço direito, a cruz balança para frente e para trás no ar, encostando no antebraço. Sei que o cansaço é culpa desse poder, mas não só dele. Deixo-me aliviar o peso no ombro e deixo a mão tocar o chão. As feridas pelo corpo começam a latejar pelo esforço. Tive muitos machucados na casa incendiada, preciso de alimento e repouso antes que caia inconsciente.

Patético, é como me sinto. Incapaz de se ajudar ou ajudar quem ama.

Aperto os olhos, engulo a frustração. Apoio-me nos cotovelos, insistindo para conseguir ao menos me sentar. Não posso ficar no chão, preciso achar onde minha avó morava e resolver isso de uma vez por todas para ficar com Melissa. Quando consigo ficar erguido, porém, recebo uma explosão de luz contra os olhos.

— Liga a sua lanterna para me ajudar a enxergar — ela ordena.

Assinto, calado, e faço isso.

— Agora fica deitado que eu encontro os documentos.

— Quem devia fazer isso sou eu — falo entredentes.

— Para com isso, Ian. Estamos juntos nessa.

Juntos, a palavra ecoa na minha mente. Deito a cabeça no chão duro, fecho os olhos e me permito sorrir. Realmente estamos juntos, pensar nisso ainda parece um absurdo. Melissa até disse que me ama! Viro o rosto, observando o corpo dela se movendo entre os arquivos. Meu sorriso se despedaça ao me lembrar do que teremos após achar as respostas nesse ambiente empoeirado.

Podemos estar juntos, mas tem coisas que só eu poderei fazer.

Volto a fechar os olhos. Não vejo nenhum rosto deitado em caixão, nenhuma mulher dos sonhos sendo engolida pelas trevas, muito menos os fantasmas dos entes queridos. A única coisa que vejo é a escuridão das pálpebras.

Tenho certeza de que o demônio pode ser abolido com esses estranhos poderes que possuo, mas não sei como fazer isso completamente. Nem se possuirei energia o suficiente. Passo os olhos pela silhueta de Melissa que está impressa na parede por causa do celular dela.

Eu preciso conseguir vencer o demônio.

Volto a encarar o teto coberto de mofo. O demônio não é a única coisa afetando essa cidade, o tempo também é um terrível algoz. Após tantos anos isolando pessoas, o destino de Santa Mônica foi ser isolada de tudo. Sem moradores, sem cuidados, apenas as almas perdidas, apenas um demônio transformando os sofrimentos presos em seus muros para criar seu limbo particular…

Franzo o cenho, percebo uma coisa estranha. Jonas estava num limbo diferente para onde nossa mãe também foi. Algo que parece ter sido feito especialmente para a nossa família. Bruno não estava lá – e tenho medo de descobrir para onde ele foi –, mas e a minha avó? Será que ela também está dentro daquele mundo? Ou será que ela está nesta cidade como todas as demais almas que viveram aqui?

Será que eu posso salvar a alma dela como fiz com outros moradores?

Respiro fundo, sinto as costelas doerem e solto o ar de uma só vez. Pensar nessas coisas ainda vai me matar. Ela não se preocupou comigo ao realizar um pacto com o demônio…, mas por que ela fez esse pacto? Essa questão está na minha mente desde que aceitei o fato de estar preso em um ciclo transgeracional de maldições.

Ela não teve sucesso. Não foi uma pessoa importante na sociedade. Acabou presa em um hospital colônia, apagada da história da família, completamente esquecida. O que ela ganhou de tão importante com esse maldito pacto?

Cerro os punhos com raiva de uma pessoa que sequer conheço o rosto. Graças a ela, as pessoas que amei se dissiparam como pétalas e foram enterradas com outras flores. Por causa dela eu corro o risco de não ter a possibilidade de viver plenamente com a pessoa que amo. Bato o punho fechado, a dor se alastra pelo corpo.

— Está tudo bem?

A cabeça de Melissa surge, os cabelos rosados dançam no ar. Decido não olhar demais para o brilho dela nesse momento. O calor fluindo dentro de mim parece vir direto do inferno, a raiva é grande demais. O teto mofado parece um lugar mais adequado para deixá-la fluir.

Melissa caminha em minha direção. Fecho os olhos, respiro fundo, tentando fazer a raiva se diluir. Ela se senta perto de mim. Viro o rosto e a encontro carregando várias pastas.

— O que são essas pastas?

— Pistas, eu acho.

Uma onda se quebra nos meus nervos e no instante seguinte estou sentado com as pernas cruzadas. Ela espalha as pastas no chão, apontando para trás com o polegar.

— Ainda tem mais, essas foi as que consegui trazer.

— É tudo da minha avó? — seguro uma pasta, o adesivo diz outro nome.

— Pacientes com transtornos psicóticos…

Noto a hesitação na voz dela. Melissa indica a pasta que estou segurando. Abro apressado, folheio atrás do que ela está incomodada. A pessoa alegava enxergar pessoas que não existiam. Está na primeira linha dos sintomas, mas quando continuo lendo ela relata que via pessoas mortas. Dou de ombros, colocando a ficha ao lado.

— Parece com sintomas típicos, nem todos são médios.

Médium — ela me corrige. Sinto as bochechas aquecerem. — Essa não é a única pessoa. Pelo que olhei por cima tem outras pessoas que, após entrarem nessa cidade, começaram a ver pessoas mortas. Inclusive outros moradores que elas sabiam ter morrido.

Pego a ficha de outro paciente, outro e mais outro. Nenhum deles é a minha avó, mas todos têm os mesmos sintomas. Alguns não tinham nenhum sintoma psicótico antes de passar pelos muros da cidade. Todos viam ex-moradores mortos em algum momento do curso de suas doenças.

Melissa se levanta para ir buscar mais pastas. Assisto ela andando, o rebolado de um lado para o outro, a leveza dos passos mal fazendo som. Mordisco o lábio inferior. Olho os papeis em mãos, apertando-os com raiva. Antes eu buscaria uma explicação racional. O isolamento abrupto pode fazer sintomas psicóticos aflorarem em muitas pessoas, porém, não consigo simplesmente descartar o que agora parece óbvio.

Todas essas pessoas estavam sofrendo nas mãos do demônio.

— Acha que isso é culpa dela? — pergunto sem coragem de olhá-la.

— Não temos como ter certeza, Ian.

— Vimos mais de um fantasma de morador desde que chegamos…

Melissa coloca outros documentos diante de mim. Ergue-se e coloca ambas as mãos na cintura, olhando-me de cima.

— Talvez a cidade sempre tenha sido assim — Melissa comenta, depois leva o indicador até os lábios, cruzando os braços. — Lugares com tantas energias negativas, sofrimentos e mortes costuma ser afetado espiritualmente. Não temos como ter certeza de que é tudo culpa do demônio.

Concordo em silêncio, mas no fundo não acredito muito.

— Pode ser que esse lugar sempre foi amaldiçoado a seu próprio modo.

— E minha avó caiu exatamente aqui com seu demônio de estimação?

— Talvez ela tenha sido atraída para cá por causa do demônio. Existem muitas possibilidades, Ian. Não saia se culpando por todas essas pessoas.

— Eu não estava me culpando — minto, desviando o rosto.

Melissa solta um riso anasalado em deboche. Reviro os olhos, sorrindo. Ela se senta na minha frente e começa a mexer nos documentos. Investigo outra, encontrando logo de cara o nome do paciente, mas quando vou descartar ela me avisa que é melhor verificar do início ao fim para ter certeza que não tem folhas misturadas.

Volto a verificar imediatamente, a culpa martelando no fundo do crânio. Posso aceitar o sobrenatural, não coincidências, pois, do contrário, não existe nenhuma forma de prever coisa alguma. Não existem padrões, sentido, nada.

Um mundo tão aleatório é assustador.

— Encontrei!

Por um momento eu não tenho certeza se quero saber. No instante seguinte, ela me olha sorrindo, animada com o achado. Toda a escuridão envolvendo meu coração é dissipada com o brilho que ela projeta em mim. Solicito a ficha para olhar e ela não hesita em me entregar.

Leio o nome da minha avó no topo da primeira folha. Ali também consta o endereço, idade, aniversário e data de admissão no hospital colônia. Ela esteve naquele lugar praticamente a vida toda desde os dezenove anos. Perceber que ela nunca teve liberdade de fato me assombra como um sussurro. Tento não pensar muito a respeito, pois não quero sentir empatia por essa mulher. Não depois de tudo.

Um breve histórico sobre ela chama atenção. Leio com dificuldade, as letras estão um pouco apagadas. Esteve envolvida em alguns protestos na juventude na época de ditadura, um deles relatava ter sido aprisionada e torturada. Ela tinha apenas dezoito anos quando isso teria acontecido. Tiro o dedo da folha, a próxima página é dos sintomas e neste momento meu coração para.

 

Relata conversar com um amante de outra vida. Este homem, segundo ela, foi o responsável por salvá-la da tortura. Cita que ele está sempre com ela usando seu longo sobretudo e chapéu. Acredita que este espírito é aliado dela e fará mal àqueles que ela não goste e que continuarão se encontrando em outras vidas.

 

Ao fim da leitura não consigo evitar rir. Não acho nada disso engraçado, na verdade é assustador… e hilário. Percorri até este momento tentando compreender os motivos que a levaram a fazer um simples pacto, mas esse relato faz parecer com algo muito mais profundo do que isso.

Eu não sei lidar com isso.

Melissa faz aquele olhar de pena, o mesmo que os colegas de faculdade faziam quando alguém perto de mim morria. Escondo o rosto atrás da mão, contendo o riso aos poucos. A raiva crescendo dentro de mim se esbarra numa profunda tristeza. Não somente pela situação atual, mas por imaginar o que ela possa ter passado se tiver sido realmente torturada. Trinco os dentes, pois, no fundo, isso me faz ter uma detestável simpatia pelas motivações dela.

O mundo foi péssimo com ela, posso mesmo julgá-la?

Eu posso, resmungo comigo mesmo, deixando a raiva tomar conta e se transformar nessa nuvem escura aprisionando o coração. Por causa dessa decisão egoísta toda a minha família está morta. Graças a essa mulher de rosto desconhecido posso não ser capaz de aproveitar o amor da mulher da minha vida.

As lágrimas caem pesadas como o fechar de um caixão.

— Isso não é justo — rechaço com o rosto escondido. — Nada disso é justo, sabe? Ela devia ser a vilã, uma pessoa terrível, um monstro egoísta, alguém tão odioso que nenhuma razão seria suficiente. Por que ela não é assim?

— Ninguém é tão preto no branco, Ian…

— Ela devia ser.

Viro o rosto, deixando o antebraço cobrir mais o rosto do que a mão.

— Ian…

Melissa toca as pontas dos dedos na minha pele, mas eu me afasto em reflexo. Não quero seu olhar de pena, sua voz de misericórdia, seus toques quentes que arrancam o frio da tristeza.

Neste momento eu só preciso sentir.

A tristeza. A raiva. A dor. A confusão. O medo.

Tudo se mistura dentro de mim em cores que nem consigo compreender. Melissa respeita meu espaço. As lágrimas continuam fluindo em um choro silencioso. Sem risos debochados pela situação terrível que enfrento, apenas o imensurável vazio que nunca me permiti sentir desde que tudo isso começou.

Sempre sendo forte, sempre sendo resiliente, sempre sendo qualquer baboseira que usam para a negação aos meus sentimentos mais desastrosos. Estou muito, muito cansado de ser forte.

Abaixo a mão, os olhos fechados desaguando, e afirmo com a cabeça.

Ela entende o anseio do meu coração e me abraça apertado.

Melissa tem o abraço mais confortável do mundo. A forma como nos encaixamos é mística. Dois corpos forjados pelas mãos divinas para se encontrarem e se conectarem. Os cabelos rosados desenham uma coroa na minha cabeça, posso ouvir seus batimentos cardíacos tranquilos, os dedos tocando gentilmente minhas costas.

Eu amo essa mulher.

Graças a esse amor eu me permito descansar antes de enfrentar o demônio que assombra meus passos.

Graças a esse amor eu sinto que posso vencer.

Comentário do Autor

Uma das coisas mais difíceis de entender na vida é que nem todo mundo pode ser considerado um vilão — elas são só pessoas com qualidades e defeitos. Ian descobriu, mas aceitar é diferente. Como será que ele ficará a partir de agora?

GOGUN.