Você Não Está Só #23

Capítulo 22 — A Bruxa

Anteriormente…

Ian descobriu um segredo chocante sobre o passado de sua avó e isso o fez olhar diferente para a situação…

amor e ódio são opostos

amor e ódio são iguais

amor e ódio não existem

amor é ódio, ódio é amor

eu te amo ou te odeio?

eu existo.

A Bruxa

Capítulo 23 — A Bruxa

Revisão: Bianca Ribeiro.

Eu não sei quanto tempo ficamos abraçados. Não sei quantos beijos trocamos. Não consigo ter certeza de nada neste momento, com a mão na maçaneta prestes a reiniciar essa jornada aterrorizante. Antes de abrir, olho no fundo dos olhos de Melissa que está bem atrás de mim. Ela parece mais determinada do que eu – ou apenas menos cansada.

Carregar sozinho todas essas cicatrizes é exaustivo.

O toque macio da mão dela na minha me faz aliviar os ombros, tensionados com o medo do que nos espera além daquela porta. Ela sorri timidamente. Eu tento devolver, mas não consigo. A única coisa que penso é como seria melhor não ter que lidar com nenhuma maldição e apenas me importar em amá-la até o fim dos tempos.

Mas você teria confessado tudo isso sem a maldição?

Fecho os olhos, suspiro num meio sorriso. Bruno sempre me disse para confessar os sentimentos e eu nunca o escutei. Talvez continuasse assim, assistindo as chances passarem. Encarando tudo de uma distância segura porque assim nada de errado aconteceria; e então tudo de errado aconteceu.

Jamais darei créditos ao demônio, mas é claro que ter meu mundo revirado de ponta cabeça me fez agir.

E agora é hora de agir novamente.

— Se aquele monstro ainda estiver ali, irei usar esta mão. Caso eu desmaie, traga-me de volta para cá. Não corra mais riscos, entendido? — questiono sem olhá-la, pois, tenho medo de mostrar a ela todo medo que está percorrendo minhas veias neste momento.

— Farei o que for preciso por você, Ian.

A resposta é exatamente como esperava porque é a mesma que eu daria.

Giro a maçaneta, a mão direita vibrando com a energia latente que se envolve no pulso como mágica. Dou de frente com a escuridão permeada de ligeiros feixes de névoa branca. Nenhuma criatura monstruosa, apenas o silêncio.

— Acho que ele se cansou de brincar conosco — debocho.

— Talvez sua alma esteja pronta.

Melissa fala aquilo com muita, muita seriedade. Vejo em seu rosto o pânico que essa ideia lhe incumbe. Balanço a cabeça para os lados, negando essa ideia apenas por reflexo, um pouco nervoso. Se for isso, pelo menos significa que teremos como sair do hospital sem maiores problemas.

Assim que dou o primeiro passo, no entanto, escuto um baque. Alguém derruba um suporte de metal. Sobressalto me virando na direção do barulho, encontrando uma idosa encolhida no canto com roupas de internação. Deixo ambas as mãos no ar com calma.

— Eu não farei nenhum mal, está tudo bem.

 Ela abre os olhos branco-leitosos e se levanta com cuidado. Outros brilhos esbranquiçados surgem no corredor. Fantasmas de outros pacientes, homens e mulheres, todos idosos. Alguns carregam marcas de hanseníase, outros apenas os destroços de uma alma aprisionada.

— Você é o neto da bruxa, não é? — uma senhora questiona.

— Sim. Meu nome é Ian, muito prazer.

— Por que você está aqui? — um senhor pergunta.

Quando percebo estamos cercados de fantasmas. Melissa está encostada nas minhas costas, minha mão direita segura firme a dela. Ajeito os ombros como se estivesse de frente para a turma prestes a apresentar um trabalho estudado um dia antes.

Passo os olhos por cada um dos fantasmas. Seus rostos parecem assustados e curiosos. Como se tivesse algo que eu possa falar que os deixe mais tranquilos. Franzo as sobrancelhas, um silêncio fúnebre recai no local. Parece haver uma corda no meu pescoço me impedindo de falar antes de encontrar as palavras ideais.

Neste momento é como se um raio caísse na minha cabeça. As coisas reveladas pelo padre fantasmagórico quando chegamos a cidade parece ribombar dentro de mim. Essas pessoas não deviam estar aqui, presas neste limbo construído pela maldade de um demônio.

Todas as almas merecem descanso.

— Eu vim acabar com o demônio que os mantém aqui.

— O que está fazendo, Ian? — Melissa sussurra, indignada.

— Aquilo que eu acho que é certo.

Dou um passo para frente. Levanto o punho fechado, luzes faíscam e enlaçam meu punho criando um clarão. Os fantasmas ficam hipnotizados com o brilho. Essa é a luz capaz de fazê-los descansar eternamente. Abaixo a mão, pois não posso me cansar ainda mais antes de encarar o demônio, e respiro fundo voltando a encará-los em um silêncio momentâneo.

— Minha avó fez coisas terríveis. Eu vim desfazê-las.

— Você pode mesmo vencê-lo? — uma mulher fala com a voz tremula.

Eu não sei, é a verdadeira resposta, mas tudo o que faço é assentir.

Eles trocam olhares, conversando em silêncio. Meu coração ameaça paralisar de tanto medo frente ao que pode acontecer caso eles não levem fé nas minhas palavras. Até agora pude fazer a passagem dos espíritos, mas não eram tantos juntos e eu não estava fragilizado após tantas coisas. Por isso enquanto eles parecem decidir nosso destino, volto a me projetar na frente de Melissa feito um escudo.

— Como podemos ajudar? — indaga um senhor.

— Nos guiando para fora do hospital. Temos que ir até a casa dela.

Os fantasmas concordam e o que antes era um cerco ameaçador vai se tornando em uma proteção contra as sombras. Seguimos os espíritos pelo corredor escuro sem ouvir barulhos de criaturas, mas vejo outros residentes do limbo em quartos improvisados. Todos nos assistem marchando com olhos curiosos.

Chegamos na frente da entrada do hospital. Eles ficam atrás de nós, alinhados. Viro-me para eles, observando-os em silêncio. Eu não sei como cumprirei minha palavra, mas sei o quanto quero. Essa cidade já foi suas moradias por tempo demais. Muitos deles nem queriam ter vindo. Foram exilados, seja por uma doença desconhecida à época ou pelo preconceito. Nenhuma dessas pessoas teve muita escolha.

Estou cansado desse demônio tirando os direitos das pessoas.

— Obrigado.

Nenhum deles me responde. Abro as portas-duplas. A névoa da rua invade o interior do hospital, serpenteando pelos espíritos que se misturam na palidez fria desaparecendo nela. Seguro a mão de Melissa, o calor de seu toque é suficiente para fazer meu coração acertar o ritmo das batidas.

Mergulho no vazio branco diante de nós. Melissa me acompanha, os dedos apertando mais forte. Dentro da névoa podemos ver sombras humanas nos olhando. Devem ser outras pessoas aprisionadas neste mundo a parte, atormentados pelo demônio de chapéu que os prendeu na cidade até mesmo depois da morte.

Paramos debaixo de uma placa de esquina. Essa deve ser a quinta desde que saímos do hospital. Quando fazemos essa pausa eu só consigo pensar nos monstros que podem estar escondidos nessa cortina de névoa. Melissa indica o lado que devemos ir e eu apenas assinto.

Aperto mais forte a mão de Melissa no meio da caminhada apenas para senti-la melhor. Nossas mãos parecem ter sido moldadas para se entrelaçar. Sorrio de canto. A situação pode ser horrível, mas estamos juntos. Se eu fui amaldiçoado ao nascer será que também fui destinado a estar com ela?

— Estamos perto — ela fala de repente, parando na frente de uma casa.

— Pode senti-lo?

Concorda, o rosto em pânico. A névoa fica menos densa na nossa frente, como se nos convidasse a seguir para dentro da casa que é igual a todas as outras. Largo sua mão por um instante, pegando-a pela cintura e trazendo-a contra o corpo. Ela me olha com os lábios pressionados, olhos arregalados, porém, não há medo neles. Está claramente surpresa com minha atitude e nada mais. Abro um sorriso tímido por vê-la assim.

Beijo sua testa demoradamente. Fecho os olhos, deixando o tempo passar como se não tivéssemos mais nada para fazer na vida. Selando mais do que meus lábios nela, selando também todo meu amor. Se essa for a última oportunidade de amá-la não irei desperdiçar.

Olho-a no fundo dos olhos, um sorriso pairando em meu rosto. Ficamos assim por algum tempo, pois preciso vê-la perfeitamente antes de seguirmos em frente. A cor dos olhos, as estrelas que são suas sardas, o tom da pele, os cabelos rosados, o desenho delicado do nariz, as sobrancelhas escuras, as linhas das bochechas, os lábios macios e de tanto encará-la, o sorriso mais lindo do mundo que abre só para mim.

Eu quero ficar com ela por muitos, muitos anos. Não, eu quero mais. Quero construir uma vida inteira com Melissa. Selo nossos lábios demoradamente. Neste momento não há mais nada no universo inteiro. Nenhuma maldição, nenhum espírito maligno. Apenas nós dois. Juntos.

— Eu te amo, Melissa — sussurro assim que nossos lábios se separam, ainda de olhos fechados, sentindo sua respiração quente.

— Eu também te amo, Ian.

Beijo a mulher da minha vida mais uma vez. Saboreio o momento, perdendo o resto da sanidade ao tocar sua língua. Sinto o gosto de lágrimas misturadas ao beijo. Encostamos as testas e nos olhamos no fundo dos olhos procurando a alma um do outro. Choramos juntos porque temos medo do que acontecerá após entrar na casa.

Penso no que o padre nos revelou quando entramos na cidade. Minha avó teve visões de como cada um de nós morreria. Ele não contou como, então posso estar prestes a me lançar a morte. Mesmo assim, eu enxugo as lágrimas com o dorso da mão e encaro a mulher que amo.

— Vai ficar tudo bem, Mel.

— Promete?

— Juro.

Melissa concorda em silêncio, enxugando as lágrimas.

Respiro fundo, afasto os pensamentos negativos e solto os ombros. Trocamos um olhar rápido. Chegou a hora de descobrir se posso vencer o sobrenatural para viver com quem amo. Chegamos mais perto da porta de entrada. Uma camada de frio passa por debaixo dela, nos envolvendo como uma cobra prestes a nos devorar. Giro a maçaneta, a porta range indo para trás devagar. A névoa de fora serpenteia para dentro, o frio suspira contra meu rosto.

Quando a porta termina de se abrir o que salta aos olhos é estranho.

A casa é igual àquelas outras por fora, mas por dentro é um antro de ocultismo. Fica muito claro que a pessoa que vivia nela era adepta a muitas coisas. Pentagramas, estrelas de Davi, círculos e sigilos estão desenhados por todas as paredes da sala. Várias velas estão espalhadas pelo cômodo, abandonadas há meses.

A porta bate atrás da gente de repente. Por mais que não experimente, tenho certeza de que está trancada. Melissa engole em seco, os ombros tensionados.

— Ele está aqui dentro.

Abro e fecho os dedos da mão direita, pronto para usar essa habilidade. Antes, porém, ouço o choro abafado de alguém dentro da casa. Franzo as sobrancelhas. Procuro por uma reação de Melissa, ela também parece ter percebido o barulho. Seguro a mão dela com a canhota e me preparo para enfrentar o que o demônio tiver contra nós com a destra. Caminhamos cuidadosamente na direção do choro.

O frio fica ainda pior assim que boto os pés na divisa da sala com o quarto.

Isso não pode estar acontecendo, penso com um sorriso nervoso, percebendo de onde vem o choro. No fundo do quarto, no canto da parede, consigo ver uma pessoa encolhida. Os cabelos são pretos como a noite, compridos o suficiente para esconder a pessoa por completo.

Solto a mão de Melissa, indico a ela que espere e piso no quarto. Chamas azuis incendeiam velas espalhadas no cômodo. A pessoa me olha por cima do ombro com aquela expressão fantasmagórica.

— Não…, por quê? Por que você veio?! — o fantasma fala. Afunda as mãos nos olhos, grunhindo feito um animal abatido. — Eu avisei o padre, eu contei a ele como você morreria, por que você está aqui e não aproveitando os últimos dias, Ian?

Entreabro os lábios. A voz não sai. Como sairia? As lágrimas, por outro lado, são uma tormenta pesada. Mordisco o lábio inferior até sentir o gosto férreo. Aperto os olhos, viro o rosto. Ergo a mão para manter Melissa afastada. Prefiro que ela não conheça essa parte da minha família.

A mulher bota as mãos na parede, os dedos são pálidos e derramam porções de cinzas aos pés dela. Começa a murmurar algo indecifrável, encosta a testa na parede, fecha os olhos e começa a batê-la. A cabeça dela vai-e-vem contra a parede. Cada impacto derruba um pouco mais das cinzas sobrenaturais e expande as ranhuras.

Por um lado, quero interrompê-la. Por outro, fico satisfeito com a cena. Essa mulher é a culpada pelas tragédias que tem caído sobre meus ombros e arrancado da minha vida todas as pessoas que amo. Mordisco outra vez meu lábio inferior, tentando conter a vontade de… de que? Posso sentir tanto o borbulhar das lágrimas como o rasgar de um sorriso e não sei o que exatamente meu coração anseia mais.

— Não devia ter vindo. Não devia ter vindo… — Rosa repete ainda batendo na parede, deixando impresso as cinzas na parede pintada com os estranhos símbolos religiosos.

Respiro fundo, dou o primeiro passo. Ela volta a me encarar com uma mistura de raiva e medo no olhar. Apesar da branquitude láctea dos olhos, estranhas veias pretas cobrem parte do olho a fazendo parecer mais bicho do que gente.

— Eu vim acabar com isso.

— Não fale comigo! Ele pode ouvir! Ele vai ouvir!

A mulher avança contra mim tentando cobrir minha boca com a mão. Desvio, seguro o antebraço dela com a destra e a encaro quase duas cabeças mais alto.

Quando estava viva ela devia estar passando por graves problemas de saúde, pois sua magreza não é normal. Se não fosse um fantasma, acho que nem poderia se levantar. Meu coração é enrolado por uma âncora que afunda num oceano de melancolia. Por mais que eu queira sentir raiva dela, por mais que ela tenha provocado um efeito dominó terrível, ela não é um monstro.

Rosa é apenas uma pessoa.

As lágrimas escorrem pelos olhos dela como sangue apodrecido. Balançando a cabeça para os lados, ela repete que eu não devia estar ali. Concordo com a cabeça — eu devia estar aproveitando a vida, não tentando incansavelmente fugir da morte. Rosa para de falar ao cruzar olhares comigo. Não sei exatamente o que ela está vendo dentro de mim, mas sei o que eu consigo enxergar através dela.

Tudo o que eu vejo é dor.

— Vai ficar tudo bem.

— Não vai, ele vai te matar. Eu vi, Ian, eu vi.

Escutar meu nome vindo desses lábios mortos me paralisa por um instante. A pessoa que nunca conheci não existe mais nesse mundo, mas consigo vislumbrar um pouco do que ela foi em vida; um poço de desespero e sofrimento devido as próprias atitudes.

Rejeito a possibilidade de ser morto por ele, abro um sorriso gentil.

— Você deve partir agora.

— Eu não posso. Ele não me deixa.

— Pode sim.

Concentro a energia espiritual que cria feixes luminosos no braço direito. Rosa arregala os olhos, passando-os da luz ao meu rosto. Os fios brilhantes começam a se espalhar ao redor dela como uma espiral.

— Então você também pode fazer isso?

— Sim, graças a senhora.

O brilho fica mais forte. Ela relaxa o corpo inteiro, fecha os olhos e coloca a cabeça para trás com os longos cabelos pretos. Um sorriso ameaça desabrochar no rosto rachado por onde a luz começa a passar.

— Vá em paz, Rosa.

Um clarão explode no quarto a partir do corpo dela, fazendo com que sua alma finalmente tenha algum descanso.

Comentário do Autor

Compreender é diferente de aceitar e perdoar. Ian terá que conviver com muitas coisas ao longo da vida, mas o que virá desse momento com a avó?

Esse mês é meu aniversário de 5 anos de carreira e essa semana (hoje em específico) estou lançando o conto Ouvida pelo Vazio, um conto sobre o passado de Angelina, da novela Devorado pelo Vazio. Confira minhas redes sociais e/ou meu perfil no Wattpad para obter o conto de graça!

GOGUN.