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Você Não Está Só #24
Capítulo 24 — Perdão e Medo

Anteriormente…
Ian finalmente conheceu a avó e decidiu fazer sua passagem espiritual…
como perdoar quem me tirou tudo?
como perdoar quem te tirou tudo?
o perdão não devia ser pesado
mas é tudo o que ele é.
Capítulo 24 — Perdão e Medo
Revisão: Bianca Ribeiro.
Os sentimentos negativos fluem dentro de mim como uma correnteza descontrolada, afogando tudo de bom que já existiu em meu coração. Isso me causa dor física. Todos os nervos, músculos e ossos se comprimem sendo esmagados com a pressão do sentir. De repente, meu corpo é suspenso em pleno ar dentro do clarão. Correntes invisíveis amarram meu corpo. Tento me soltar, me debater, gritar ou correr.
Estou completamente aprisionado.
Fecho os olhos e tento acalmar a respiração. Percebo, porém, que não existe respiração. Existe apenas um fluxo de cinzas viajando pelas vias aéreas, soltando-se das narinas e boca cada vez que tento espirar. Tento levar as mãos ao pescoço, mas permaneço paralisado. Posso sentir os batimentos cardíacos acelerando.
É assim que morrerei? Afogado nas cinzas do passado?
Então percebo… isso não é o mundo real.
Isso é um episódio de paralisia do sono.
Abro os olhos em um mundo que não é mais uma imensidão de luz. Encontro-me em uma sala de baixa iluminação, sem janelas, mas com muitos sons perturbadores. Já consigo me mover minimamente e assim que viro o rosto em busca de respostas encontro dois homens fardados usando capacetes parecidos com penicos. Eles seguram os braços de uma pessoa e afundam o rosto dela em uma bacia d’água. Apesar da brutalidade, eles sorriem.
Tento ajudá-la, mas as correntes me seguram no lugar.
Levantam o rosto dela antes que morra. Mais um lapso de dor, um relâmpago de sofrimento atravessa minha existência. Os cabelos pretos e compridos estão pesados após o mergulho, emoldurando um rosto muito semelhante ao de minha mãe. Sangue escorre pelo nariz que um dia foi quebrado. Apesar do sofrimento, ela sorri.
Rosa não se entrega. Cospe o sangue que escorre aos lábios contra a bochecha de um dos militares.
— Homens menores já me tiraram o ar melhor que vocês — debocha e posso sentir que, no fundo, ela faz isso porque não acredita que possa sair dali com vida. No fundo, sei que ela perdeu amigos no meio daquele inferno. Sei disso, pois tudo isso flui dentro de mim como cinzas. — Aguentam mais um round?
O militar limpa o sangue do rosto e vira a mão contra o dela. Minha avó é lançada ao chão, rolando nele completamente nua. Ergue o rosto, o sangue escorre pelos dentes e seu sorriso fica manchado de vermelho-amarelado. Começa a rir como uma maníaca. Após tirar o sangue do rosto, ele sorri maliciosamente. Consigo entender o que vai acontecer, o que aconteceu, mas prefiro não encarar.
Ao abrir os olhos de novo o ambiente está mudado. Rosa está encolhida no canto de uma cela, nua e muito machucada. Mais vermelho escarlate a envolve. Tudo o que ela pensa é que ela precisa sair dali. Que ela vai fugir dali. Um lapso de memória passa por ela e atinge minhas têmporas, um encontro predestinado, um cajado encontrado na rua, o altar que ela ergueu porque achou bonito e os sonhos que passou a ter desde então.
O demônio estava com Rosa e ela sabia disso.
A cela é aberta de repente. Ela sabe que será seu fim se não fizer nada. Por isso, tomada pela fúria, coragem, tolice e desespero… ela pula sobre o militar. Morde a orelha do desgraçado até arrancar um pedaço, sente o gosto férreo do sangue imundo dele. Com dor, ele vai ao chão. Rosa começa a esmagar a cabeça dele com os pés, a sola do calcanhar acerta o olho por ser mais frágil, repetindo os movimentos mesmo depois dele apagar. Repetindo até destruir seu crânio.
O sorriso que ela esboça é de satisfação.
Passa a língua pelos lábios, se contorce para abrir as algemas, e desenha um círculo mágico na frente do cadáver. Fala coisas que não entendo, em uma língua estranha. Uma fumaça densa começa a sair pelo cadáver, desenhando uma silhueta humana na frente dela.
O demônio do chapéu.
— Você ganhou — ela fala, os olhos cheios de raiva. O coração mergulhado nas trevas. — Tome tudo o que você quiser de mim, apenas não permita que esses filhos da puta me vençam.
— Sua alma, de sua família, tudo? — ele indaga, aproximando-se dela.
— Tudo. Apenas esteja comigo até o fim e não deixe eles vencerem.
— Que assim seja.
O demônio a toma pela cintura e a aproxima de si. Com um beijo o pacto é finalmente selado. Este é o momento que destruiu a minha vida, mas foi o momento que salvou a dela. Um grupo de militares surge na sala, talvez pela demora do outro em retornar. Eles não podem ver o demônio que solta sua cintura devagar, mas veem perfeitamente o cadáver.
Basta um instante para eles assimilarem tudo o que está acontecendo e começarem a disparar contra a mulher. As balas acertam o peito dela, a dor é excruciante, os ombros sacodem, as pernas vão perdendo o equilíbrio, ela cambaleia para trás até bater na parede com sangue borrifado para todos os lados mais uma vez. Quanto sangue uma pessoa é capaz de perder?
Rosa cai no chão e eu sei — sinto nos nervos — que ela está morta.
O frio da morte toma conta de mim. Talvez seja pelo toque que fiz nela, talvez eu esteja morrendo do lado de fora desse mundo de memórias. A única coisa da qual tenho certeza é de como a morte se parece a uma alma — o momento mais desesperador da existência.
Um dos militares fica responsável pela desova do corpo morto dela enquanto os outros resolvem o amigo desgraçado. Arrasta o corpo dela feito alguma coisa descartável. Todo meu corpo estremece de raiva. Eu não sei absolutamente nada dos motivos de ela estar presa naquele lugar, mas tenho certeza de que não esteve errada em nenhuma de suas atividades e ainda mais clareza de que nenhuma vida deveria ser tratada daquela maneira.
Ele carrega o corpo da minha avó até uma vala onde vários outros cadáveres estão, alguns cobertos com uma rasa quantia de terra, a maioria ainda exposto e fresco. Atira o corpo de Rosa sobre eles, numa pilha, e se vira para agarrar a pá que finalizará o serviço.
Ou melhor, finalizaria.
O coração dele deve ter parado por um instante ao ver o horror que se ergueu diante dele: Rosa está em pé, um dos olhos branco-leitoso como os fantasmas que perambulam no mundo dos vivos, os furos sem nenhum sangramento. Ela sorri, os dentes manchados de vermelho. Arranca a pá dele, acertando a cabeça do algoz num piscar de olhos, repetindo até que ela desapareça no meio da terra.
A mulher olha em minha direção, arregala ambos os olhos, sorri e coloca o indicador na frente dos lábios pedindo silêncio. Solta a pá no chão e cambaleia rumo ao horizonte. Atrás dela percorre uma névoa pálida que se espalha me engolindo em seu frio mórbido.
Dentro desse mundo pálido em que apenas a morte existe, eu me encolho. Abraço as próprias pernas, encaro o vazio com simpatia. Essas são memórias reais, tenho certeza. Assim como foi com os outros espíritos, porém, muito mais intenso. Talvez por causa do sangue que corre em nossas veias. Tenho certeza, contudo, que isso não muda o fato principal de que foi naquele momento que toda a minha vida foi decidida. Naquele beijo horripilante os destinos de todas as pessoas da minha família foram selados. Um instante de sofrimento intenso foi capaz de mudar tudo.
Aperto os olhos, quero sair desse limbo frio. As lágrimas enchem meus olhos. Estão cheias de tristeza, raiva e… frustração. Muita, muita frustração. Parece ser o maior sentimento dentro de mim neste momento. Pelo destino selado naquele dia, pelo que ocorreu naquela época e, principalmente, por conseguir compreender o que a levou a fazer um pacto com o demônio.
Se eu aceitaria fazer um pacto para ficar com quem amo, como posso criticá-la por fazê-lo para sobreviver?
Ergo o rosto ainda dentro da palidez do mundo frio em que ela colocou toda sua família ao beijar a criatura feita de sombras. As lágrimas estão escorrendo sem que eu tenha qualquer controle sobre elas. Por mais que eu tente, porém, não consigo mais culpá-la de tudo o que está acontecendo.
Minha avó era apenas uma pessoa, não um monstro.
— Eu te perdoo, vó — sussurro na imensidão vazia.
A névoa serpenteia ao meu redor até me cobrir por completo. Fecho os olhos, sinto o frio penetrar na carne e congelar minha alma. Se eu morrer agora pelo menos não terei esse rancor dentro de mim.
Se eu morrer agora também não verei mais Melissa.
Abro os olhos, empurro a névoa ao meu redor com o espírito. Continuo imobilizado como dentro de um pesadelo, mas o maior pesadelo é não ter uma vida ao lado de Melissa. Por isso, eu grito. Rujo o nome dela para o além, encontro dentro de mim a força motriz que me fez aceitar os erros da minha avó, a única força capaz de mudar alguma coisa nesse mundo.
Eu me agarro ao amor que sinto por Melissa, a força deste sentimento provoca uma erupção de luz a partir do meu braço direito. Dentro da palidez encontro uma silhueta vagante. Posso jurar que é de Bruno, pois parece com a forma de andar dele. No entanto, neste momento, não posso me deixar ser enganado por imagens. Preciso voltar àquela que amo. Preciso sair desse mundo frio para ser tomado pelo calor do abraço da mulher da minha vida.
A luz se espalha a partir de mim provocando outro clarão.
Estou deitado no chão, o teto tem mofo preto e desenhos religiosos. Sobressalto ficando sentado. Este é o quarto em que encontrei minha avó, porém, não há nenhum sinal de seu espírito. Enxugo as lágrimas que ficaram presas nos olhos. Tudo aquilo foi real, eu sei disso. Levanto-me com certa dificuldade, apoiando-me no chão e na parede, a mão esquerda está com o ferimento ardendo.
— Melissa! — clamo o nome da única pessoa que importa neste momento, mas o silêncio é ensurdecedor. Faz o coração errar a batida. O medo sobe através do meu estômago como uma cobra venenosa. — Melissa?!
Não há resposta.
Não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não…
Cambaleando, saio do quarto. Ela devia estar na frente dele, mas não encontro sequer sua sombra. Melissa deve ter me visto cair. Será que ela também achou que eu estava morto e buscou o demônio para fazer um pacto? Levo as mãos a cabeça, passo os dedos pelos cabelos. Isso não pode estar acontecendo.
Eu não posso perdê-la.
Eu não quero perdê-la.
Chamo seu nome outra vez, e outra, e mais uma. Ela não atende. Perambulo dentro da casa me arrastando pelas paredes, as pernas fracas e acredito estar pálido devido à perda de sangue. Passo pela sala onde as velas estão acessas com chamas azuis que não esquentam em nada o ambiente. Procuro na cozinha sem sucesso e me impulsiono na direção de um cômodo fechado com um enorme símbolo esotérico desenhado na porta.
Empurro a porta com o peso do corpo cujas forças parecem estar desaparecendo lentamente. As chamas azuis estão no seu interior também. Melissa está em pé, de costas para mim, diante de um brilho azulado feito em cima de um altar de madeira com um cajado encostado nele.
— Melissa, você está bem?
Ela se vira para mim com um sorriso nojento que não é dela. Os olhos revirados lembram os de um fantasma, mas ela ainda está viva. Isso já aconteceu antes, no centro espírita. Solta uma risadinha anasalada, pois deve sentir o cheiro do medo que exalo e diz com a voz do demônio saindo pelos lábios de Melissa:
— Não se preocupe, garoto, ela logo estará de volta.
Comentário do Autor
Agora é o momento final, o clímax definitivo. Por isso, semana que vem teremos capítulo duplo para encerrar a publicação. Será um capítulo pela manhã e um pela noite. Os anúncios oficiais ainda virão. Enquanto isso, confira o lançamento do conto extra do universo de Devorado pelo Vazio, disponível no Wattpad ou para download (EPUB). Ainda em ritmo de comemoração das Bodas Literárias, você assinante receberá um conto inédito na sexta-feira chamado Uma breve conversa!
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