Você Não Está Só #25

Capítulo 25 — Tragédia

Anteriormente…

Ian conseguiu perdoar a avó após descobrir todos os detalhes do pacto, mas ao retornar para a casa

ser humano é estar fadado

a tragédia de extinguir-se cedo.

Tragédia

Capítulo 25 — Tragédia

Revisão: Bianca Ribeiro.

Meu maior medo se tornou real. Melissa está fora de si, possuída pelo demônio que usa seu corpo contra sua vontade. Ele caminha com o corpo dela até o cajado encostado no altar cujas velas brilham azuladas. Agarra-o, apoiando-se nele, encostando o queixo no dorso das mãos e mostrando o maldito sorriso nojento.

Este ambiente não tem os mesmos símbolos que no resto da casa. As paredes estão limpas e tudo que possa ser religioso se concentra no altar. Parece haver sigilos e escritas em línguas mortas. A minha avó deve ter construído tudo isso de acordo com as ordens dele. Não encontro nada que pareça ser o nome desse demônio, mas também não é o que importa no momento.

A única coisa que me importa é salvar Melissa.

— Você deu sorte, garoto — fala com o timbre asqueroso. Desabrocha um sorriso malicioso. — A garota sabe mesmo se ajoelhar para rezar.

Pressiono os olhos, contenho a raiva. Ergo um pouco o braço direito, o crucifixo sacode no ar. Os olhos revirados parecem mirar em sua direção, entretanto, o rosto dela não expressa o que eu esperava. As sobrancelhas se curvam e o sorriso fica mais debochado.

— Tem certeza de que isso não vai afetar a alma dela também?

Eu desconfio de cada palavra dita pelo demônio, mas a pergunta abala minha concentração o suficiente para que eu hesite. Talvez ele esteja apenas mentindo, mas e se não estiver? As poucas coisas que entendo sobre essa habilidade são a energia necessária para usá-la e como posso fazer os fantasmas, espíritos, almas ou sei lá como se chamam, descansarem.

Se eu fizer isso em uma pessoa viva será que eu a matarei? Posso conviver com muitas coisas, mas a morte do amor da minha vida pelas minhas próprias mãos não é uma delas.

Por fim, abaixo a mão.

— Assim é melhor, garoto.

— Por que está fazendo isso com ela? Eu sei que me quer.

— Você tem uma alma deliciosa, mas com data de validade. A dela, não.

Mordisco o lábio. Vi nas memórias de Rosa como ele é capaz de ressuscitar uma pessoa desde que ela o aceite como parte dela. Por que ele continua colocando a impossibilidade de fazer o mesmo comigo se eu aceitar fazer um pacto?

A única resposta é seu sadismo.

— Ela não vai fazer um pacto com você.

— Tem certeza, garoto? Como eu disse, ela é ótima em se ajoelhar. Ajoelhou na frente do meu altar e clamou pelo meu cajado dentro dela. Só vim olhar para a sua cara antes de finalizar o contrato.

Ele está tentando me provocar com essa forma de falar. Minha mãe costumava falar que os demônios usavam as coisas que mais amávamos contra nós porque assim ficávamos fracos. Uma vez me explicou que era por isso que sua igreja mudava de pastor constantemente, para que nenhum deles criasse vínculos afetivos com as pessoas. Sempre achei que isso era besteira, mas também pensava que muitas coisas eram e agora sei que são reais.

Melissa deve estar tentando achar uma forma de me salvar. Posso imaginar ela trocando a própria alma pela minha apenas para que eu não morra…, mas eu também não posso ficar com esse peso nos ombros. Prefiro morrer a deixá-la se entregar nas mãos desse demônio.

Olho para a mão esquerda, uma mancha de sangue mais forte nos curativos me faz pensar em quanto sangue perdi até agora. A fraqueza que venho sentindo é muito mais do que reflexo dos poderes que despertei e tenho usado nos espíritos da cidade; ele é uma consequência após tantas feridas. Ninguém aguenta em pé com tantos cortes abertos.

Enfio o polegar na ferida, por cima do curativo, pressionando até sentir entrar na carne. O calor do sangue ensopa meu dedo e escorre. O rosto de Melissa fica abismado, as sobrancelhas sobem e os olhos crescem. Ele não esperava que eu fosse fazer uma idiotice dessas. Mexo o polegar, rompendo totalmente o ferimento e aumentando-o.

— Devia ter prestado mais atenção nas marcas da minha adolescência.

— Você é mesmo muito parecido com ela, garoto.

Há uma estranha admiração na voz dele. Por algum motivo isso me faz sorrir ainda mais. Apesar de tudo, minha avó foi alguém que enfrentou com unhas e dentes um monstro maior até mesmo do que esse demônio.

Começo a perder a visão, embaçando pelo choque da hemorragia. Sorrindo, perco a força nas pernas e caio para trás. Ainda no ar vejo que o maldito sorriso no rosto dela permanece lá. A última coisa que sinto no mundo real é o ar frio tocando minhas bochechas.

E no instante seguinte tudo é trevas.

O frio me abraça como se eu fosse parte dele. De certa forma, sou. Enquanto começo a ouvir o crepitar de madeira outra vez posso sentir que no mundo fora daqui estou esvaindo em sangue, cada segundo mais perto de morrer. Abro os olhos puxando o ar para os pulmões, em reflexo, e me sento encarando Jonas sentado próximo da fogueira outra vez.

— Ainda não é sua hora, Ian.

— Resolvi decidir isso eu mesmo — rebato, me levantando.

Jonas aperta os olhos, também se levantando muito mais alto do que eu.

— Como você caiu aqui, então?

— Porque ele me quer. Jamais perderia a oportunidade.

— Ian, o que você vai fazer?

Olho para ele com um sorriso corajoso. Jonas fica visivelmente confuso.

— Eu vou salvar a mulher que amo e viver minha vida.

— Sabe como isso é paradoxal sendo dito neste limbo, não é?

Concordo com um riso anasalado. Passo os olhos pela floresta estranha. Preciso encontrar um poço, assim como Melissa citou ter ficado quando foi possuída no centro espírita. De primeira tudo o que vejo é trevas. As mesmas para onde sempre tive medo de que ela fosse levada.

— Onde fica o poço?

— Você não quer ir até lá, Ian. A mãe ronda aquele lugar.

Desta vez quem fica pasmo sou eu. Da última vez ele disse que nossa mãe passou por uma transformação. Tenho um pouco de medo do que isso significa de verdade. Ainda mais depois de ver as coisas monstruosas que residiam na cidade fantasmagórica, no limbo que foi criado nela.

— Eu preciso ir. Melissa está lá.

— Melissa?! Como isso é possível?

— Apenas me leve até o poço, Jonas.

Meu irmão assente, dá as costas e parte comigo logo atrás. Gostaria muito de encostar a mão direita nele e realizar a passagem dele, mas neste momento receio que não poderia fazer isso e, mais importante, que acabaria morrendo definitivamente se o fizesse. Enquanto corro, ainda assim, olho a mão destra, vendo como a translucidez é menor do que da última vez. Devo estar muito próximo de morrer do lado de fora desse mundo.

Percorremos no meio da floresta escura. Jonas não fez mais nenhuma pergunta, assim como era no passado. Como da vez em que tive meu celular confiscado pela escola e pedi que ele fosse retirar para mim como meu responsável com receio da mãe brigar comigo. Apenas foi até lá, pegou e me devolveu. Sequer quis saber os motivos de eu ter perdido o telefone.

Sorrio no meio do caminho com a mera lembrança. As lágrimas se acumulam debaixo dos olhos. Por mais que eu tente mostrar que essas mortes não me tiram do eixo, indo às aulas, fazendo tudo normalmente, eu não deixei de sentir falta dele um único dia desde sua partida. Assim como não deixei de sentir saudades da minha mãe. Da mesma forma como tenho sentido isso crescer em mim desde a primeira manhã sem Bruno.

Eu nunca deixarei de sentir falta das pessoas que perdi. Posso deixar os sentimentos adormecidos, mas a verdade é que até meu último suspiro continuarei lembrando de seus rostos, suas vozes, os momentos juntos e encontrarei as feridas em meu coração tão abertas como quando elas foram embora para os braços da Morte.

Amor e morte se conectam no luto como uma reação química que transforma até a menor das lembranças em uma explosão de melancolia, felicidade, tristeza e falta.

Jonas aponta para uma pequena construção de tijolos elevada no meio dessa floresta obscura, numa clareira. Um rosnado ecoa no meio das árvores quase no mesmo instante.

— Ali está o poço, Ian. Eu não sei o que vai fazer, mas não posso te acompanhar. Vou em outra direção impedir que nossa mãe venha até aqui. Realmente não seria bom para nenhum de vocês.

— Sempre me protegendo dela quando faço coisa errada…

— É o dever do irmão mais velho.

Concordo em silêncio, feliz por ele ter sido essa figura.

— Obrigado, Jonas.

— Agradeça depois que estiver tudo resolvido.

— Não, não é sobre isso. Obrigado por ter sido um irmão tão incrível.

Ele me olha por cima do ombro com um sorriso que em tempos de vida seria mais brilhante do que uma estrela. Indica com o queixo o caminho que preciso seguir e se separa de mim no instante seguinte.

Vou achar um jeito de tirar vocês daqui, penso, mas não consigo falar em voz alta com medo de ser uma promessa vazia. Primeiro preciso sobreviver e salvar a mulher que amo.

Paro na frente do poço aberto. Antes que eu possa olhar dentro sou estremecido com um rugido animalesco que ecoa pela floresta. Temo pela segurança de Jonas, mas ele decidiu lutar à sua maneira. Preciso fazer o que vim fazer.

O interior do poço é muito escuro, mas consigo ver o rosa dos cabelos de Melissa no fundo dele. Olhos vermelhos me encaram na frente dela, o sorriso maldito do demônio que me espera ansiosamente. Ela também ergue o rosto, mas não consigo enxergar seu rosto. Lanço-me para dentro do poço sem me preocupar com as consequências da queda.

Caio com os pés firmes ao lado dos dois. Melissa salta para trás, encostando-se na parede. Percebo que o líquido parece mesmo com piche, porém, o cheiro é muito forte e característico. É sangue. Algo me diz que é o sangue de todas as vítimas desse desgraçado.

— O cavaleiro chega para salvar a princesa — o demônio debocha, observando-me do alto de seus mais de dois metros de altura. — Você fez mesmo isso, garoto? Você preferiu tirar a própria vida a vê-la nas minhas mãos?

— Do que ele está falando, Ian? Eu estava prestes a te salvar!

— Não estava! Ele é um mentiroso desgraçado, Melissa.

— E você um idiota suicida igual a avó.

Coloco-me na frente de Melissa, abrindo um braço como escudo.

— Você não fez isso, não é? Ian, fala que é mentira.

— Foi mal, Mel.

Melissa bate nas minhas costas com os punhos fechados.

— Idiota, idiota, idiota, idiota!

— Eu sou mesmo um idiota, mas você é uma muito maior se achou mesmo que eu não viria salvar o amor da minha vida.

Ela para engolindo as palavras. Viro o rosto por cima do ombro com um sorriso honesto. Encosto a mão direita nela, sentindo a fluidez da luz mágica. Tenho certeza de que ela vai me odiar pelo que farei neste momento, por isso, antes de fazê-lo eu falo a única coisa que realmente importa na vida.

— Eu te amo mais do que tudo nessa vida, Melissa. Você é o amor da minha vida e de todas as próximas. Até logo, meu amor.

— Ian—

Antes que ela possa falar qualquer coisa, faço a luz envolver sua alma concentrando-me na ideia de levá-la de volta ao próprio corpo. O demônio começa a rir alto e me faz encará-lo.

— Você está morto, garoto. Ela não vai poder impedir a hemorragia.

— E você vai deixar isso acontecer?

O demônio para de rir.

— Você se superestima demais.

— Seu acordo com a minha avó estará encerrado em alguns segundos com a minha morte, porém, você pode ter a minha alma melhorada. Deixe-me viver e eu prometo continuar fortalecendo essa alma até o dia que eu morrer. Irei estudar, me aprimorar, lidar com os espíritos e descobrir tudo sobre esse mundo e quando finalmente morrer… você terá a alma mais saborosa que já experimentou em toda sua existência.

— Acha que isso me basta para lhe trazer de volta?

— Que mais você quer?

A translucidez está menos firme, partes do meu corpo começam a se rachar igual aos fantasmas. Olho nervoso para a passagem do tempo, penso nisso tudo que minha família enfrentou. Em como não tivemos escolha e como odiaria fazer isso com mais alguém. Temo que ele venha a pedir alguma coisa absurda capaz de me fazer rejeitar a condição.

— Você, garoto. Assim como vivi com sua avó, quero viver com você.

— E o que isso significa?

— Estarei lá em seus sonhos mais profundos, observando sua vida em cada canto, em cada esquina. Viverei com você e terei a chance de conhecer novas almas.

Então colocarei outras pessoas em risco, penso, mas o lado esquerdo do meu corpo parece ter se desprendido de mim, embora ainda exista. Devo ter morrido de fato. Tenho pouco tempo para tomar uma decisão.

— Se eu aceitar… você deixará Melissa em paz?

— Se for uma condição, posso aceitar. A garotinha fica livre das minhas influências e não farei pactos com ela, mas poderei acessar quaisquer outras pessoas que você se aproxime.

— Fodam-se elas, eu aceito o acordo.

As sombras saem de seu manto escuro e me enrolam como tentáculos pegajosos. Sou puxado para perto dele, forçado a encarar o sorriso afiado que parece prestes a me devorar.

— Então temos um acordo, garoto.

— Temos um acordo, demônio.

— Pode me chamar de ⏹︎⏹︎⏹︎⏹︎⏹︎⏹︎.

— Apenas sele logo esse pacto, desgraçado.

O demônio se curva sobre mim colocando seus lábios frios contra os meus, a língua invade minha boca como uma centopeia. Fecho os olhos pela sensação terrível que desce na minha garganta. Perco a firmeza nos pés, ele mordisca meu lábio, provocante. Ele me inclina para trás, franzo o cenho, e ele termina o beijo me segurando para trás e me olhando no fundo dos olhos com aquelas esferas de fogo.

— Tenha bons sonhos, garoto.

Antes que eu possa questionar ele me mergulha no líquido viscoso que cobre minhas pernas e me afoga nas trevas do poço. Tento me tirar dessa situação sacudindo braços e pernas. Logo perco as forças e a última coisa que vejo são dois pontos vermelhos atrás de todo sangue.

Comentário do Autor

Ian sempre disse como isso terminaria…, então por que mais um capítulo?

GOGUN.

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