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Você Não Está Só #26
Capítulo 26 - Adeus, Santa Mônica

Anteriormente…
A tragédia de Ian chegou ao fim com sua alma sendo tomada pelo demônio…
adeus, adeus
o fim chegou
adeus, adeus
amorte venceu
Capítulo 26 — Adeus, Santa Mônica
Revisão: Bianca Ribeiro.
Este lugar é muito, muito frio. Ele também é silencioso, pálido e… tranquilo. Diferente de outros momentos, eu consigo me mover. Nenhuma corrente invisível me prende. Nenhum monstro surge para atormentar minha consciência abalada. Sou apenas eu na imensidão pálida e vazia. O silêncio envolvendo minha existência de forma inédita, algo que nunca senti antes. Parece um convite para ficar.
Tenho vontade de aceitá-lo.
Dentro deste mundo tenho a impressão de que não existe dor. Seria a primeira vez em toda a minha vida – ou morte – que poderia viver livre do sofrimento. Isso não parece perfeito? Quero seguir a esmo neste mundo, percorrendo seu universo branco até desaparecer na imensidão vazia do horizonte. A vida é difícil demais, acabar assim seria mais fácil.
Um sorriso desabrocha feito um lírio-amarelo.
A morte é convidativa, pois com ela tudo se encerra, mas só a vida nos permite experimentar a coisa mais pura de todas: o amor.
— Ian… — cantarola uma voz distante. — Ian!
Essa voz não é qualquer voz, é de Melissa.
Se ela me chama eu vou.
Mergulho na imensidão branca me guiando pela voz da mulher que amo. Neste momento tanto faz se é mais fácil cair no vazio a enfrentar a vida. Eu só posso amá-la e por ela ser amado se estiver vivo, então é só isso que me importa. Ficar com ela é tudo o que me importa neste momento.
— Ian! Por favor, Ian!
— Estou chegando, amor — digo mesmo sabendo que ela não me ouvirá.
O frio começa a se dissolver em um calor familiar. Fecho os olhos novamente, deixando a sensação me invadir. Quando os abro novamente encontro aquele mesmo brilho rosado. A luz de um farol que posso reconhecer a vários quilômetros de distância.
A cor rosa ilumina meus olhos com tanta intensidade que só me resta afundar nele com um sorriso no rosto.
Gotas caem nas minhas bochechas. Ouço o choramingo baixo. Abro os olhos devagar, algumas partes do corpo ainda dormentes. Parece haver um borrão do lado esquerdo, mas a primeira coisa que vejo é bonito o suficiente para me fazer ignorar as preocupações: Melissa.
Ela chora sobre mim, mas ainda é ela. Melissa, minha Melissa. Com dificuldade levanto o braço direito e encosto a ponta dos dedos frágeis na bochecha dela. Um choque atravessa seu corpo, os olhos arregalam e seus braços ficam tensos. Tento sorrir para mostrar que está tudo bem, que estou bem, que estou de volta.
Curva-se sobre mim, beijando minha testa aos prantos. Toco suas costas, acariciando-a com os dedos lentamente. Fico calado, deixando seu pesar desaguar sobre mim. Um sorriso volta a se formar quando ela se levanta me encarando em fungadas bobas, esfregando as mãos no rosto e bagunçando aqueles cabelos rosa que me salvam todos os dias.
— Pensei que não fosse mais acordar…
— Eu sempre acordo, Melissa. Eu sempre volto para você.
— Promete?
— Juro.
Melissa concorda em silêncio, os olhos enchendo d’água de novo. Percebo que estou deitado em suas coxas e aproveito o momento um pouco mais. Fico sorrindo feito um idiota, os olhos fechados para saborear este momento. Ela acaba engasgando-se numa risadinha.
— Idiota.
— Seu idiota.
— Só meu.
Assinto, sorrindo, e fico assistindo enquanto ela enxuga as novas lágrimas. Depois, apoio-me no chão sujo e fico sentado ao lado dela. Coço o olho esquerdo tentando remover o borrão, mas não tenho sucesso.
Suspiro, virando o rosto de lado para encontrá-la.
— Você está bem, Ian?
— Melhor do que nunca — falo com sinceridade. Antes estava me sentindo drenado, prestes a cair a qualquer momento. Agora, porém, é como se eu tivesse dormido por dias. — Parece que nasci de novo.
Melissa me olha séria, calada.
Encaro a palma da mão esquerda. Consigo mexer os dedos sem nenhuma dor. Tiro os curativos devagar. Ainda existe uma cicatriz enorme dividindo a palma no meio, mas o ferimento está curado. Tenho certeza de que havia aberto ele e piorado sua situação antes de cair. A imagem da minha avó sendo baleada volta à mente. Abro um sorriso distante, entendendo o que aconteceu.
— Eu morri, não é?
— Por alguns minutos. Achei que tinha lhe perdido para sempre, Ian.
— Não precisa se preocupar com isso. Eu voltaria nem que fosse como um fantasma só para ficar com você.
Melissa revira os olhos, o sorriso pelo qual me apaixono todos os dias ilumina o ambiente escuro em que estamos. Isso me faz notar que as chamas azuis se apagaram. A casa parece mais cinzenta, escura, e mais quente. Encontro os mesmos símbolos de antes, mas eles parecem muito mais corroídos, como se o tempo tivesse passado de forma correta para eles e não tivessem sido estacionados no limbo.
Respiro fundo, encho os pulmões com vida. Apoio os braços nos joelhos, entrelaço os dedos pensando no que aconteceu. Fiz um pacto com aquele demônio da mesma forma que minha avó, só que diferente dela, não estava buscando algo honroso como sobreviver a um período sombrio da história. Desejei algo egoísta, pouco me importando com o resto do mundo.
E eu me sinto bem com isso.
— Como você voltou?
— Pacto.
— Ian…
— Antes de falar algo, saiba que a culpa é toda sua — debocho.
Ela fica na defensiva, aperta as sobrancelhas, entreabre os lábios.
Desabo com um riso que não saía de mim há meses.
— Não adianta fazer essa cara de desentendida, Melissa. Se você não fosse a mulher da minha vida, a pessoa mais perfeita de todas, a mais bela, a mais fantástica… eu nunca teria feito um pacto para voltar.
— Você é muito bobo às vezes — Melissa me censura, mas sorri com as maçãs do rosto avermelhadas. — Muito, muito, muito.
Concordo sorrindo. Passo a mão por sua bochecha, deslizo os dedos segurando-a pela nuca e a traga até meus lábios. Beijo-a como se fosse a primeira vez – e, de certa forma, é. Essa é a primeira vez sem medo de estar correndo contra o tempo para aproveitar um instante a mais e também é a primeira vez sem o medo de fazê-la sofrer com minha ida, pois não tenho a menor intenção de ir embora.
Essa é também a primeira vez que consigo enxergar claramente um universo em que estamos juntos até o fim dos nossos dias. Após vários anos, após saborear cada detalhe da vida com intensidade.
Acabo sorrindo feito um idiota no meio do beijo.
— No que está pensando?
— No quanto eu te amo, Melissa.
— Eu também te amo, Ian.
Voltamos a nos beijar até nossos corações se encontrarem ardendo.
De repente, ela me envolve em seus braços e afunda o rosto no meu pescoço, fungando outra vez. Seu aperto é tão gostoso, mas também tão melancólico. Dei um susto e tanto nela. Preciso me cuidar para não fazer isso acontecer de novo. Daqui em diante apenas alegria, prometo sabendo que é impossível cumprir uma promessa dessas.
— Eu estou sentindo ele com você… — Melissa sussurra.
— Tudo bem, ele não lhe fará mal algum.
— Isso faz parte do pacto? — Eu apenas assinto. Ela parece irritada. — Estava morrendo e pensando em me proteger?
— Eu estava me salvando ao te proteger.
Outra vez o rubor toma conta de seu rosto, mas dessa vez a fazendo ficar inteiramente corada. Desvia o rosto, esconde o rosto. Acho que até me xingou baixinho, mas não deu para ouvir direito. Ela ficou ainda mais linda assim, envergonhada.
— Ainda vai morrer em algumas semanas?
— Pelo pacto da minha avó, não. Estou livre da maldição.
— E preso a outra…
— Mas essa eu escolhi.
A vida é cheia de maldições, prefiro ter controle sobre quais permito que me marquem.
Volto a coçar o olho esquerdo. Melissa pega seu telefone nos bolsos e vira a tela para mim no modo câmera selfie. Apesar de todas as coisas que aconteceram, este ainda sou eu. A diferença é que meu olho esquerdo não possui mais traços humanos; ele se tornou branco-leitoso como os de um fantasma. Como os da minha avó após voltar dos mortos.
— Dizem que os olhos são as janelas da alma…
— E minha alma morreu, tecnicamente.
— É. Mas talvez possamos reverter isso.
— Não precisamos nos preocupar com isso. Eu tenho uma vida inteira para me acostumar com isso, está tudo bem. O importante é que estou vivo e com a mulher que amo.
Melissa sorri e concorda. Como é bom vê-la sorrir.
Uso o joelho de apoio para ficar em pé. Dou a mão para ajudar Melissa a se levantar. O calor do seu toque é agradável e me faz sorrir sem querer. Quebro a distância entre nós e deposito um beijo em sua testa com ternura.
— Vamos embora?
— Juntos — ela responde.
Confirmo em silêncio, tomo a mão dela na minha e cruzo a casa até a porta de entrada. Coloco a mão na maçaneta e sou tomado por uma sensação estranha ao não sentir o mesmo frio que vinha sentido nos toques da cidade desde nossa chegada. Abro a porta, confuso, e o mundo lá fora não tem a mesma névoa de antes.
Andamos para fora da casa com o sol do crepúsculo tocando as casas, deixando-as meio alaranjadas. A cidade é mais bonita do que aparentava debaixo de todo o frio do limbo criado por aquele demônio. Procuro algum vislumbre dos espíritos que residiam aqui. Melissa faz o mesmo, embora não acredite que ela possa vê-los fora do estado de antes.
Santa Mônica está submersa no vazio do esquecimento.
— Será que todas aquelas pessoas…
— Não sei. Eu não as sinto, nem as vejo. Mas esse mundo é o nosso mundo, não mais aquele em que estávamos. Eu realmente não sei o que aconteceu àquelas almas.
E nem quero saber.
Melissa solta um suspiro.
— Caramba, Ian, você pareceu um verdadeiro médium agora.
— É o que sou, não é?
Sorrio sem jeito, aceitando o título do qual nunca acreditei.
Melissa concorda alegremente.
Chegamos na entrada da cidade onde não há nenhuma mensagem de boas-vindas, apenas o nome do hospital colônia forjado em pedras. Trocamos um olhar silencioso que diz muitas coisas. Escuto um sussurro perdido na imensidão do nada e ao me virar encontro apenas o vento assoviando.
Seguimos para fora da cidade com passos lentos, mãos unidas. Faço carinho no dorso da dela. O vento que assopra nossos rostos é amistoso, embora ainda seja inverno. Descemos em silêncio, prestando atenção na estrada sinuosa. De repente, nossos celulares voltam a ter sinal. Ambos começam a vibrar com a entrada das mensagens e notificações.
Ignoramos os barulhos tecnológicos para nos aproximar da beira do monte de onde dá para enxergar a cidade sendo banhada pelo fim de tarde. Seguro a cintura dela ao meu lado, ela coloca a cabeça em meu ombro. Ficamos em silêncio apenas contemplando a beleza do mundo.
Algo encosta no meu ombro. Viro a cabeça o suficiente para enxergar atrás de mim. Jonas e minha mãe estão parados na subida, olhando com os rostos fantasmagóricos de quem não pode viver neste plano, mas desaparecem assim que pisco. Respiro fundo, pressiono os dedos na cintura dela. Eles continuarão vivendo dentro de mim até o fim da minha vida.
Viro para o outro lado, mas agora para encarar a mulher mais linda.
— Namora comigo, Melissa?
Melissa abre o sorriso mais brilhante da história da humanidade.
— É claro que sim, meu idiota.
Fico sorrindo feito o idiota dela. Ela também sorri como a flor mais bonita de um jardim chamado vida. Perdemos muito tempo ignorando nossos sentimentos. Eu perdi muito tempo por ser covarde. Agora estou pronto para viver o amor que corre em minhas veias muito mais forte do que qualquer tragédia.
Agora nenhuma maldição vai me impedir de viver.
FIM.
Posfácio
Chegamos ao fim de VOCÊ NÃO ESTÁ SÓ!
Após meio ano de publicação… que jornada! Assumo como, em muitos momentos, isso foi cansativo, mas sabia que valeria a pena. Queria contar essa história para o mundo e agora ela está concluída. Por mais desafiante que tenha sido todo esse período, ela se concluiu com louvor.
Quando comecei a escrever o livro só conseguia pensar em como a minha vida seria facilmente enredo de filme de terror — três mortes dentro de um período de um ano, todas muito próximas. De fevereiro de 2018 a fevereiro de 2019 perdi meu irmão, meu tio mais próximo e minha bisavó que era uma segunda mãe. Todos em um gap de meses específicos; essa é a origem da maldição familiar de Ian.
Nesse mesmo ano eu conheci uma colega de faculdade que viria a se tornar minha namorada dois anos depois e hoje é minha noiva (e em breve será minha esposa). Por isso quando resolvi contar essa parte da minha vida sombria, quis também contar essa parte tão feliz. A parte em que, mesmo no caos, mesmo diante do impossível, ainda podemos achar o amor.
Essa história é uma forma de manter viva a lembrança do meu irmão Brendon, do meu tio Jones e da minha bisavó Beth; e também é uma celebração a mulher da minha vida, a Fernanda.
Só tenho a agradecer a você que leu até aqui, assim como a Andressa Rios que elaborou a capa da história, a Bianca Ribeiro que revisou todos os capítulos e foi leitora beta, assim como devo um carinhoso obrigado a leitura beta de Marina Freijóo, Gabby Meister e Nanda Lazulli — todo mundo escreve, então dê uma chance para as histórias dessas pessoas incríveis!
VOCÊ NÃO ESTÁ SÓ concluiu o enredo da maldição familiar. Agora esses personagens irão descansar um pouco enquanto trabalho em outros projetos — mas isso não significa que eles serão abandonados. Caso tenha interesse nesses “outros projetos” tenho uma novidade para você: estarei lançando um Catarse Assinaturas com textos inéditos, bastidores e muito mais. A newsletter se tornará um espaço dedicado a notícias específica.
Até a próxima,
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