Você Não Está Só #3

Capítulo 3 — Estrelas Brilhantes

Anteriormente…

Melissa foi até a casa de Ian ver se estava tudo bem após horas sem resposta, interessada em ouvir o amigo, ela sugeriu que brincassem do jogo do copo para tentar conversar com possíveis espíritos, mas as coisas não saíram como o planejado…

há um buraco dentro de mim

que não pode ser preenchido

este buraco é fundo, sem fim

poderia preenchê-lo comigo…?

 

… nem que seja nos meus sonhos…

Estrelas Brilhantes

Capítulo 3 Estrelas Brilhantes

Revisão: Bianca Ribeiro

Sangue goteja nos cacos de vidro e na cartolina. Seguro a mão pelo pulso e a viro deixando a palma para cima, o vermelho borbulha e escorre pelos lados. Melissa solta um gritinho desesperado, salta e para em pé como um gato. Posso ver a preocupação incendiando o fundo de seus olhos. A culpa não é exatamente dela, mas fico calado porque nesse momento estou pensando se preciso ir ao hospital.

— Tem uma caixa de remédios na estante da cozinha — aviso.

— Isso precisa de pontos!

Balanço a cabeça para os lados. Melissa vai até a cozinha mais rápida que o vento. Deslizo o polegar do pulso até o ferimento e junto-o ao indicador para fazer pressão até o sangue interromper o fluxo por tempo suficiente para contemplar a profundidade do corte. Posso resolver isso com soro, gazes e esparadrapos. Pelo menos por essa noite.

Melissa volta com a caixa transparente atulhada de caixas de remédios e pacotes de curativos. Obrigado, mãe, agradeço mentalmente por ela ser estranha ao ponto de estocar essas coisas. Criou esse hábito na infância de Jonas, pois, segundo ela, meu irmão mais velho estava sempre doente ou machucado.

— Ian, a gente tem que ir ao hospital ver isso.

— Não está tão feio quanto parece.

— Tem sangue por tudo!

Eu não aguento a expressão no rosto dela. Os olhos arregalados e as sobrancelhas franzidas a fazem parecer uma personagem fofa de desenho animado. Deixo um risinho escapar. Melissa nubla a expressão, incomodada com a forma que trato a situação. Deve se sentir culpada por ter sugerido a brincadeira idiota que acabou me cortando, mas isso é besteira. Estou acostumado a ter cortes no corpo.

— A mão é uma região com muita passagem de sangue, é apenas isso. Posso te mostrar a profundidade do corte agora mesmo se quiser.

Melissa balança a mão na frente do corpo.

— Só me diz como te ajudar.

Concordo e começo a guiá-la calmamente. Peço que encontre uma tesourinha dentro de um pacote plástico, passe álcool e deixe-a repousando sobre uma gaze. Depois de separado, eu explico quais outros itens irei utilizar. Peço que deixe aberto a tampa do soro e o pacote de gazes. Por último, peço que coloque uma toalha debaixo da minha mão, sobre o sangue mesmo. Corre até o banheiro, pega uma toalha e deixa a porta do armário debaixo da pia bater para retornar depressa. Algumas gotas escarlates caem no antebraço dela quando coloca a toalha no chão. Peço desculpas, mas ela parece ignorar.

Melissa está apavorada. Sua respiração está desorganizada, os olhos saltados parecem prestes a cair do crânio e as sobrancelhas congelaram na expressão de pânico. O fluxo de sangue diminuiu, mas ela não notou este detalhe. Está surpresa demais com a quantidade de vermelho deslizando na minha pele. Será que é a primeira vez que ela vê tanto sangue diante dela? Até onde conheço de sua história, ela nunca teve acidentes ou enfrentou situações parecidas com a família. O único vislumbre de um passado marcado por lesões é a cicatriz de queimadura em sua barriga.

 Acho que, neste ponto, eu a invejo um pouco. Cresci vendo coisas terríveis acontecendo ao meu irmão mais velho. Jonas já chegou em casa coberto de sangue após ser parado por um policial e não ficar quieto por não concordar com a abordagem. Levou tantos golpes no rosto que seu nariz permaneceu desfigurado até o fim dos seus dias. Fora isso, eu também tive alguns acidentes na infância e incidentes na adolescência que me renderam cicatrizes nas pernas. Ver o sangue escorrer pela mão com o soro sendo jogado nele com a outra mão parece apenas mais um dia comum.

— Está doendo muito? — Melissa entrelaça os dedos, confusa.

— Um pouco.

É mentira. Isso está ardendo pra caralho, mas não é nada incomum. Existe certo prazer nesta dor.

— Consegue ver? Não foi muito fundo.

— Parece horrível para mim.

Solto um risinho ao vê-la sequer se aproximar para olhar.

Após usar soro o suficiente, peço para ela abrir o saco de gaze. Levo a tesoura até o pacote, agarro um pedaço do curativo e utilizo com cuidado passando no ferimento para retirar os resquícios de vidro. Por sorte, não encontro nenhum sinal de vidro encravado. Ainda assim, peço para que use a lanterna do celular, me dando mais visibilidade. Neste ponto ela parece mais interessada em assistir ao que estou fazendo.

Encerro a limpeza, peço mais gazes e as coloco sobre o corte. Já não está mais escorrendo sangue como antes. Peço ataduras, passo pela mão firmando bastante a região para estancar de vez o sangramento e uso esparadrapos para dar a última sustentação. Melissa permanece em silêncio analisando com cuidado cada etapa. Acho que não é só sobre ela nunca ter enfrentado nada semelhante, mas nunca terem ensinado. Minha mãe tinha bastante medo de acidentes domésticos, mas não tinha condições de deixar alguém nos cuidando, então aprendemos a nos cuidar desde cedo. Precisávamos saber como limpar as feridas e como cuidar uns dos outros.

— Obrigado, isso é o suficiente.

— Tem certeza? — Afirmo com a cabeça. — Você foi incrível…

— Não foi nada de mais.

Começo a guardar as coisas na caixa com a mão boa.

— Eu sou uma inútil nessas coisas.

— Você me ajudou bastante.

Melissa sacode a cabeça para os lados. Antes de eu falar algo, ela se levanta com a caixa em mãos. Vai para a cozinha devagar, os cabelos rosados deixando um rastro colorido no apartamento cinzento. Abro um sorriso involuntário assistindo seus movimentos graciosos. Poderia me acostumar a encontrá-la em casa todos os dias. Consigo nos ver cozinhando juntos, dando provas na boca um do outro, sentando para comer juntos, rindo e acabando a noite juntinhos no sofá, assistindo alguma coisa até pegarmos no sono.

De repente, volto a sentir frio. Muito frio. Os pelos dos braços ficam arrepiados, minhas canelas doem nos ossos. Bato os lábios, trêmulos, e vejo uma nuvem pálida escapando por eles. Será que perdi muito sangue? Olho a toalha debaixo de mim com várias manchas, mas o que me chama atenção é o vapor gélido que ainda está escapando dos cacos de vidro. Engulo em seco, pois também senti frio mais cedo, quando vi a alucinação e pouco antes do copo explodir. Talvez essa seja uma resposta psicológica, a virada de chave para os sintomas psicóticos. Levanto o rosto e não levo mais do que um segundo de procura para ver os olhos vermelhos brilhando no corredor escuro que leva aos quartos.

— Está tudo bem, Ian? Ficou pálido de repente — Melissa pergunta na porta da cozinha, assustada feito um gatinho.

— Está sim — minto, fecho os olhos e me levanto.

— Tem certeza? Podemos ir ao hospital se quiser.

Sacudo a cabeça para os lados. Melissa fica a dois passos de mim. Graças a nossa diferença de altura ela precisa levantar um pouco o queixo. Sorrio tentando transmitir confiança, mas sinto os olhos dele nos encarando e nosso momento se torna um incômodo. Essa é a prova de que estou enlouquecendo. Se aquilo fosse real ela também estaria vendo. Também não parece estar sentindo o frio, embora isso possa ser pelo sangue perdido.

Melissa aperta os olhos como se fosse chorar. Então ela se encaixa me abraçando e eu retribuo um pouco confuso. Encosto o queixo no topo de sua cabeça, voltando a encarar a criatura que nos assiste dentro da escuridão. Fecho os olhos, ignorando a alucinação fruto de uma mente devastada pelo trauma e aproveito o momento carinhoso com Melissa. Não é como se nunca tivéssemos momentos assim, mas dessa vez tem algo diferente. Talvez sejam suas mãos apertando forte meu corpo ou seu rosto encaixado perfeitamente em meu peito. O cheiro florido de seus cabelos enche minhas narinas me transportando para um lugar suave onde não existem problemas, apenas nós dois.

Abro os olhos e a criatura desapareceu.

O frio também desapareceu.

— Desculpa, eu não sei o que aconteceu. Senti uma presença tão estranha, fria, distante. Foi como se todo meu corpo fosse esmagado por enormes paredes de gelo. Você já sentiu isso antes? — Melissa questiona sem sair dos meus braços, afasta o rosto e me encara próxima o suficiente para eu sentir sua respiração no pescoço.

Eu não consigo encontrar as palavras para respondê-la. A única coisa que tenho capacidade é de ficar hipnotizado pela sua boca; ela está a um momento de coragem de distância. Ergo os olhos para os dela e encontro toda sua delicadeza exposta numa expressão gentil. Fico preso neste momento, observando o brilho de seus olhos, as estrelas salpicadas em sua pele, a imensidão de sua existência em meus braços.

— Já sentiu?

A voz dela me tira do devaneio de onde não queria sair.

— Sim, mas não acha que é apenas ansiedade?

— Claro, vamos pelo caminho mais fácil.

Ela me solta. Quero enlaçar sua cintura com a mão e trazê-la de volta. Quero beijá-la como se o mundo fosse acabar essa noite. Quero rasgar o peito e mostrar a forma que meu coração bate por ela. Tenho essa ânsia, mas sei que seria errado. Estaria colocando uma pressão desnecessária sobre ela. Estragaria a amizade e eu prefiro me contentar com tê-la ao meu lado dessa forma do que não tê-la de modo algum. Por isso, apenas assisto ela se afastando e juntando a toalha do chão. Preciso limpar os cacos de vidros e é nisso que me foco. Vou atrás de folhas de jornal abandonadas na área de serviço, limpo os pedaços e os embrulho dentro de uma sacola e penduro na maçaneta da porta para não esquecer de colocar na rua.

Melissa volta a se atirar no sofá. Usa o celular com muito foco. Resolvo ficar ao lado dela, relaxo as costas no encosto e estico os braços até estalar ambos os cotovelos. Ela me olha assustada, ri baixinho e vira a tela do celular para mim. Está buscando alguma coisa para comer no aplicativo de delivery. Geralmente fazemos isso às sextas-feiras, quando não precisamos nos preocupar com a aula na manhã seguinte.

— Estou com vontade de Yakisoba e você?

— Eu comeria Yakisoba… não vai ficar tarde pra ti?

— Não se eu dormir aqui. Tem algum problema?

— N-não…

Desvio o rosto com medo de ela notar minha timidez. Melissa nunca dormiu aqui antes. Sempre foi embora cedo nos dias de semana ou viramos a noite no fim de semana com ela indo para casa na manhã seguinte. Posso sentir meu coração batendo depressa, quase tão rápido quanto na paralisia do sono.

Melissa solta um “yay” animada e volta a se focar no celular. Após alguns minutos termina de fazer o pedido. Passamos a próxima hora falando sobre coisas aleatórias enquanto fumamos um cigarro. Ela me conta como foram as aulas do dia, pois escolhemos as mesmas disciplinas esse semestre. Presto atenção em cada palavra que ela lança aos meus ouvidos, na forma como move os olhos, nos sorrisos esboçados com o canto da boca, com as mãos gesticulando animada. Quase não falo durante essa hora inteira; não por não ter conteúdo, é que gosto de responder o suficiente para fazê-la engatar em mais assuntos e continuar mostrando seu verdadeiro eu.

O interfone toca alto. Desço para buscar o pedido que já está pago. Aproveito para respirar um pouco do ar noturno da cidade. As estrelas estão escondidas atrás das nuvens. Ainda assim, o céu está belo. Subo com duas sacolas em uma mão. Quando entro no apartamento encontro Melissa tirando o moletom para ficar mais confortável, mas as roupas sobem na altura da base dos seios, por onde a queimadura escala pelo lado direito, e meu coração quase para. Abaixa rápido a blusa, seu rosto ganha uma linha avermelhada que passa de uma bochecha a outra, o que significa que ela ficou muito, muito sem graça.

— Pensei que fosse demorar mais — comenta baixinho.

— Desculpa.

Fecho a porta atrás de mim, mas queria mesmo é sair correndo.

— Pelo menos gostou do que viu? — Melissa brinca.

— Só falo na frente dos meus advogados.

Forço uma risadinha enquanto vou até a mesa. Eu nunca senti atração sexual por ninguém antes dela. Durante a adolescência eu preferia ficar na frente do computador a desenvolver vínculos com as pessoas. Achava mais interessante aprender sobre minhas bandas favoritas, assistir animes, fazer qualquer coisa que não fosse me preocupar com garotas ou garotos e relacionamentos amorosos e sexuais. Diferente dos meus colegas e até meus irmãos, eu não sentia atração física por ninguém exatamente porque eu não conhecia ninguém de verdade, apenas um reflexo que elas mostravam a qualquer um. Embora fosse chamado de gay pelos colegas, eu me entendia como assexual.

Isso mudou um pouco depois de conhecer Melissa.

Desde que a conheci quis saber mais dela, tudo sobre ela. Como uma banda nova que eu acabei de descobrir e preciso pesquisar tudo sobre todos os integrantes. Após nossa amizade se aprofundar, eu comecei a notar sua beleza.  Quando isso aconteceu não foi apenas pela admiração que eu sempre mantive para mim ao ver alguém muito bonito. Eu realmente me senti atraído por ela, física e sexualmente. Foi assim que comecei a me entender demissexual. Às vezes, enquanto ela conversava, eu acabava olhando para a boca dela pensando em como seria beijá-la. Quando sentia seu corpo apertado no meu, eu sentia cada detalhe dela com bastante atenção. Por isso ao vê-la mais exposta a mim não pude conter o calor que se espalhou pelo meu corpo, mas pude tentar disfarçar.

Exponho as sacolas sobre a mesa. Além das duas porções de Yakisoba dentro de uma marmita, ela também pediu uma Coca-Cola. Melissa passa atrás de mim e pega copos e talheres na cozinha. Colocamos uma série na televisão da sala e comemos assistindo, conversando sobre os eventos fictícios, rindo e bebendo refrigerante. Vez ou outra me pego olhando mais para ela do que para a televisão, mas nunca a deixo notar.

Termino a comida primeiro, deixo a marmita no braço do sofá e relaxo mais no móvel com um copo em mãos. Melissa come devagar porque fica muito focada no seriado. Tem um pouco de shoyu em seu queixo. Por instinto eu esfrego o dedo no seu rosto, removendo a sujeira. Ela me olha como se esperasse alguma coisa, depois vira o rosto que volta a avermelhar.

— Segunda vez ficando vermelha perto de mim hoje. Desse jeito vou acabar pensando que está gostando de mim.

— Deve ser o seu sonho, né?

— Quem não sonha com isso?

Melissa ri de olhos revirados e volta a comer dando atenção a TV.

Assistimos a mais um episódio após ela terminar de comer. Quando percebo ela está encostada com a cabeça em meu ombro e os pés no sofá. Tento relaxar um pouco, mas a sensação de estar sendo observado é insuportável. Viro refém da minha própria mente que acredita estar sendo assombrada. Suspiro com pesar. Ao invés de relaxar apenas fiquei mais tenso. Melissa segura minha mão com carinho.

As nossas mãos encaixam bem. Nós encaixamos bem. Ela está concentrada assistindo televisão. Fora as vozes dos personagens não há nenhum outro barulho dentro do apartamento. Percebo que é a primeira vez desde que nos conhecemos que ficamos sozinhos em casa. Antes sempre estava minha mãe ou irmão. Na casa dela, a mãe está sempre presente. Entretanto, agora é diferente. Agora somos só nós dois.

Por que isso faz meu coração acelerar?

Fico em silêncio até o fim do episódio mesmo não tendo prestado muita atenção. Melissa tira da série e finalmente solta a minha mão, espreguiçando-se e me olhando com uma carinha de sono encantadora. Levanto-me antes de acabar falando alguma coisa boba que vá devastar nossa amizade.

— Você pode ficar à vontade em qualquer um dos quartos.

— Obrigada.

— Vou buscar lençóis limpos e—

— Espera.

Melissa me interrompe e segura meu pulso quando ameaço me virar. Seus olhos hesitam em me encarar diretamente, mas sua mão está firme. O calor de sua mão alcança meu coração e incendeia-o. Posso desmanchar nesse exato momento; e desmancharia feliz.

— Dorme comigo?

Um calafrio atravessa meus sentidos. Engulo em seco, observando os detalhes da mulher a minha frente. Os olhos hesitantes, a mão no meu pulso, seus cabelos bagunçados, a expressão sonolenta. Quero aceitar seu convite, mas tenho medo. Melissa sabe que sou demissexual, temo que seja por isso que ela ache normal fazer esse pedido. Pode ser que pense que já que nunca me atraí por ninguém, também não iria me atrair por ela. Infelizmente é o exato oposto, eu só sinto atração por ela e por mais ninguém. Se dormirmos juntos eu não vou ter como controlar as reações naturais do corpo; e se eu ficar excitado e ela perceber? Isso vai ser constrangedor demais.

Entreabro os lábios pronto para rejeitar seu pedido, mas seus olhos brilham tanto que me deixam cego para a razão.

— Vai se sentir confortável?

— Se for com você, sim.

— Mel, você sabe que eu não deixo de ser “homem”, né?

— Eu nunca lhe vi de outra forma.

A maneira como ela me olha ao falar isso faz todo meu corpo vibrar.

O que eu sou? Um adolescente de quinze anos?

— Se pra você não tem problema…

— Não tem.

Melissa está decidida. Gesticulo com a cabeça um “sim”, mas meu coração está tão rápido que antes de nos deitarmos ele deve explodir. Ela se levanta e mantemos as mãos dadas até meu quarto. Por sorte eu arrumei a cama após desistir de ir à faculdade. Ela se senta na beira e desabotoa a calça jeans. Viro o rosto para o lado, encarando meu reflexo no espelho e de um vulto que passa atrás de mim se misturando ao corredor.

— Posso encontrar uma calça de pijama para você.

— Eu prefiro dormir assim, se não se importar.

Volto a encará-la para saber como é este “assim”. Meu coração para. Melissa está apenas de camiseta que vai até o começo das coxas. Ao lado da cama, ela fez um montinho no chão com a calça jeans e o sutiã. Subo os olhos quando ela tenta puxar a roupa mais para baixo e isso me faz notar o contorno dos seios destacados na roupa.

— Aceito uma camiseta sua para me cobrir melhor.

— Claro!

Vasculho o guarda-roupa de costas para ela. Meus dedos estão trêmulos de nervosismo. Encontro uma camiseta da AC/DC, larga e comprida. Entrego a ela ainda de costas, esperando-a terminar de se vestir e me avisar. Quando me viro de novo ela está com a camiseta escondendo suas pernas até quase os joelhos, mas isso não faz eu notar menos cada detalhe que a faz ser a mulher mais atraente do mundo todo.

Corro para o banheiro num piscar de olhos. Ela não vai aceitar dormir comigo quando souber como estou após simplesmente vê-la daquele jeito. Deveria contar logo antes que as coisas tomem outro rumo. Mas e se ela quiser isso?, o pensamento me ocorre como um lampejo. Somos amigos há anos, temos confiança um no outro e não há nenhum impedimento real para que tenhamos desejo.

Talvez ela queira ficar comigo.

Saio do banheiro apenas alguns minutos depois, com as mãos ainda tremulas e o coração acelerado. Eu quero ficar com ela, mas isso pode destruir anos de uma amizade bonita. Tenho medo de ela se decepcionar comigo – porque com certeza ela não me decepcionará. Chego até a porta do quarto, assustado com a possibilidade de essa noite ser uma virada de chaves importante em nossa relação, mas o que encontro é muito mais tranquilizador.

Melissa está dormindo.

Fico sorrindo feito bobo. Assim é melhor. Sem chances de acabar destruindo o que construímos nos últimos anos. Seremos apenas dois amigos dividindo uma cama. Bato os dedos no disjuntor para nos mergulhar nas sombras, subo na cama e fico meio sentado, meio deitado. Melissa reage ao meu movimento, suas mãos buscam meu corpo e me enlaçam antes de sua cabeça repousar em meu peito.

Posso sentir o cheiro de seus cabelos, o calor de seu corpo, os sons de sua respiração. Isso tudo me faz relaxar. Estar com ela neste momento faz os problemas parecerem menores. Contudo, a felicidade não é para gente como eu. Apenas a tragédia é aceita. Sinto o frio se espalhar no quarto. Melissa se encolhe mais em mim em resposta àquilo. Uma fina camada de névoa parece se formar no ar, mas deve ser sono. Assim como deve ser sono a sensação de ter alguém nos encarando. Olho na direção que meus instintos avisam e aperto o corpo de Melissa um pouco mais forte.

Os olhos vermelhos nos encaram na porta.

Comentário do Autor

Sou abertamente demissexual desde a adolescência. Passei muitos anos sendo chamado de estranho, de melancólico por não estar com o mesmo interesse sexual dos outros. Falavam que eu tinha problemas. Por algum motivo, na internet, tem pessoas questionando o espaço ace na comunidade, talvez porque essas pessoas são aquelas que nos taxam como estranho. Sou orgulhosamente ace, assim como o Ian. Isso não nos faz estranhos, errados, nada assim. Enfim, gosto de ter explorado o espectro da assexualidade com Ian, especialmente nesse capítulo, com direito a uma fala típica dos animes que eu assistia na adolescência. Essa é uma forma de eu expressar um pedacinho tão importante de mim e um lembrete: está tudo bem ser você.

Gogun