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Você Não Está Só #4
Capítulo 4 — As Chaves
Anteriormente…
Após o jogo do copo dar “errado”, Ian ficou pensativo sobre a mensagem e Melissa não quis deixá-lo sozinho outra vez…
é por temer perder o amor
que deixamos de viver
com medo de sentir a dor
que é pior do que morrer;
a chave para esse terror
só nós podemos ceder.
eu quero ceder a você.
Capítulo 4 — As Chaves
Revisão: Bianca Ribeiro
Abro os olhos e encontro Melissa deitada em meu peito, os cabelos rosados esparramados escondendo seu rosto. Os primeiros raios de sol do amanhecer encontram espaço pelas frestas da persiana. Faço cafuné lento nela sem pensar muito nas consequências. Se pudesse escolher, viveria neste momento por toda a eternidade. O simples pensamento desabrocha um sorriso frágil e aquece meu peito. Respiro fundo. Melissa vibra se aninhando mais. Desço os olhos achando que ela está acordando, mas ela não se aninhou. Ela se agarrou mais forte nos meus ombros, o rosto em pânico enquanto seu corpo é puxado por um tentáculo de sombra que agarra seu pé. Uma névoa gélida cerca a cama de forma ameaçadora.
Tento esticar a mão para segurá-la quando seu corpo desliza pelo meu, mas não consigo. Estou paralisado. Abro a boca, ou acho que a abri, e a voz não sai. Melissa é arrastada para fora da cama, engolida pelas sombras que agora sobem espiraladas tomando forma humana. A raiva bate no meu peito feito estaca. Dois pontos vermelhos brilham na escuridão disforme. Já sei do que se trata, isso não me deixa menos irritado. Eu não me importo com o fato de ser atormentado por essa criatura, só não posso aceitar a ideia de Melissa ser afetada também.
A névoa sobe devagar pela cama. Posso sentir o frio nos pés. Todo corpo estremece em reflexo. Solto uma nuvem branca pelos lábios quando tento falar outra vez e, ao tentar me chacoalhar, percebo que meus braços e pernas estão amortecidos. Tenho que pensar com calma, usar a lógica para me livrar desse pesadelo. Melissa está bem, deve estar dormindo ao meu lado neste momento, fora desse mundo de ilusões. Fecho os olhos deixando os pensamentos fluírem. A raiva continua borbulhando em mim feito uma chama infernal. Abro os olhos e encontro a entidade em sua forma completa, o chapéu esconde os olhos vermelhos, o sorriso cínico parece debochar da minha cara. A névoa já tomou conta de todo o ambiente e agora o quarto está imerso em uma massa branca e fria que faz meu queixo começar a bater.
— Você é muito parecido com ela.
Essa é a primeira vez que ouço sua voz; e ela soa como uma nota fúnebre.
Também é a primeira vez que acredito em sua existência desde que o vi aos sete anos. A ideia de ele ser uma projeção do meu inconsciente ainda perambula minha mente, mas sua presença parece sufocar de uma maneira tão realista que sinto que posso acabar morrendo. Pior, tenho a impressão de que Melissa pode mesmo ter sido afetada por essa praga.
E se ele for real, ele é perigoso.
Ian! Ian! Ian!
Uma voz familiar e distante chama meu nome.
Vem de algum lugar longe dessa névoa, afastada da entidade parada aos pés da cama. A criatura vira o rosto, ainda sorridente, sem mostrar os olhos, como se buscasse a origem do nome.
— Mas isso pode ser um problema — volta a falar com a voz fúnebre.
Ian! Iaaaan! Iaaaaaaaaaan!
A voz torna-se mais clara. Assustada, mas reconhecível. A névoa começa a se afastar. O calor retorna ao meu corpo que também volta a ter vida. O Chapeleiro mexe na aba do chapéu, escondendo até seu sorriso enquanto sua forma se desfaz em fumaça. “Vamos nos ver de novo em breve”, eu tenho certeza que ele diz isso antes de um clarão me forçar a fechar os olhos.
— Ian!
Sobressalto na cama e fico sentado.
— Graças a Deus! — Melissa exaspera ao meu lado e me abraça.
Fico quieto, confuso com tudo o que aconteceu. A sensação em mim é de que aquilo não foi um simples pesadelo. Vasculho com o olhar o quarto inteiro em busca da névoa ou daquele ser maldito e não encontro nada que faça meu corpo estremecer.
— Pensei que você não fosse mais acordar…
— Eu sempre acordo.
Melissa me aperta com mais força. Coloco a mão no topo da sua cabeça, acariciando-a na tentativa de mostrar que está tudo bem. Ela aperta o rosto em meu peito como uma gatinha medrosa. Fecho os olhos dando um beijo em sua cabeça. Ainda que meu corpo inteiro esteja despertando, seu calor é agradável. Ergo o rosto, os dedos se misturam aos seus cachos com leveza para não formar nós. Os olhos vermelhos pairam no corredor sem uma forma exata. Engulo em seco, pois neste momento eu não sei mais o que é ou não real. Acordar abruptamente pode causar certos efeitos visuais e é nisso que tento me agarrar para não a amedrontar ainda mais.
Continuo fazendo cafuné em Melissa e fecho os olhos para aproveitar o momento com ela sem um trauma me perseguindo. O calor de seu abraço é como voltar para casa após um dia cansativo. Aproveito cada instante em silêncio. Tenho medo de abrir os olhos e encontrar mais do que pontos de luz. A ideia do pesadelo se tornar real me faz envolver os braços ao redor dela e apertá-la mais contra meu peito.
O celular desperta ao lado da cama. Está na hora de se preparar para a aula. Melissa me solta devagar com um bufo frustrado, de rosto virado sem me encarar diretamente. Vejo a linha vermelha sobre suas maçãs do rosto e nariz. Suas mãos puxam um pouco a camiseta para baixo, cobrindo mais das coxas nuas e eu acabo me perdendo no seu corpo por um instante. Desvio os olhos, miro o corredor e percebo que não há mais nenhum sinal daquela alucinação. Coloco as pernas para fora da cama, fico de costas para ela e encosto os pés no chão gelado para sofrer um choque. Assim eu não me perco no brilho dela.
— Preciso de um banho.
— Depois de dormir comigo? Aposto que sim. — Melissa debocha com uma risadinha.
Eu não consigo evitar rir também. Olho-a por cima do ombro, vendo seus dentes brilhando numa face divertida. Balanço a cabeça para os lados. Só mesmo ela para me deixar relaxado nessa situação. Estico todo o corpo até ouvir alguns estalos e levanto em seguida.
Melissa boceja atrás de mim e pergunta:
— Você pretende ir à aula hoje?
— Não sei. Não vou conseguir escrever nada de qualquer forma.
Mostro a mão enfaixada com algumas manchas avermelhadas. Preciso trocar esse curativo após o banho. Isso se não for preciso ir até a UBS para realizar algum atendimento um pouco mais profissional. A última vez que assisti aula sem ter condições de fazer anotações foi no Ensino Médio em uma crise de tendinite em ambas as mãos. Foi um inferno não poder fazer mais nada além de escutar.
— Desculpa por isso. Eu não achava que teria um espírito tão irritado dentro desse apartamento. Dona Márcia era tão religiosa, achei que tinha realizado alguma forma de proteção por aqui.
— Minha mãe te mataria se ouvisse ser chamada de “dona”.
Sinto um travesseiro batendo em minhas costas e me viro para Melissa que está sorrindo e sacudindo a cabeça para os lados.
— Enfim, sinto muito.
— Mel, não foi nada espiritual. Deve ter sido a pressão das nossas mãos.
— Você estava fazendo força para baixo? Pois eu não estava.
Claro que eu não estava, mas não tem como ser outra coisa.
— Ian, posso te pedir uma coisa?
Qualquer coisa, penso, mas apenas afirmo em silêncio.
— Vamos ao centro espírita hoje à noite?
— Se uma brincadeira inocente do copo abriu um rasgo na minha mão, como vai ser se eu me meter num lugar desses?
Embora fale isso em tom jocoso, algo dentro de mim se revira com a possibilidade. A visão de Melissa sendo arrastada para as trevas ainda é muito clara, quase como se não tivesse sido um pesadelo, mas um aviso. Consigo ver em seu rosto como essa rejeição lhe acerta. Melissa está de olhos baixos, como se eu tivesse dado um banho de água fria nela. Um incômodo pesa nos meus ombros, pois essa não é a primeira vez que ela me convida, e nem a primeira que recuso, mas é o único convite que parece importante de verdade. E é a primeira que eu sinto que algo mais pode acontecer.
— Que horas vai ser?
— Você está falando sério? — Melissa volta a ter aquele brilho.
— Claro. Mesmo se nada acontecer ao menos passei mais tempo contigo.
Melissa solta um risinho escondido atrás da mão.
— Vai ser às 19h. Você pode dar uma olhada nesse ferimento e eu passo aqui umas 18h30 para irmos, está bem?
Melissa estica o braço até as roupas no chão e se veste atrás de mim.
Concordo com seus planos mesmo não tendo nenhum ânimo para aquelas coisas. Melissa desce da cama vestindo as roupas que estava ontem antes de dormir. De repente, sem qualquer aviso, me abraça apertado e me agradece. Fico com os braços levantados em reflexo, não conseguindo juntar as peças do que está acontecendo.
— Não esquece que só estou fazendo isso para ficar contigo.
— Eu sei, isso é ainda melhor.
Baixo os olhos encontrando seu sorriso travesso. Balanço a cabeça para os lados, rindo anasalado. Ela me solta indo até a sala comigo logo atrás. Senta-se no sofá, calça os sapatos e ajeita a mochila nas costas.
— Você vai passar em casa primeiro?
— Sim. Preciso tomar banho e trocar de roupa.
— Dê oi para sua mãe — comento indo até a porta.
— Quer que eu fale também que dormimos juntos?
Abro um sorriso. Levo um molho de chaves até ela.
— Melhor não confundir a cabeça dela — brinco e sacudo as chaves na frente dela. — Leva com você para não precisar esperar o interfone nunca mais.
— Você vai me dar as chaves da sua casa? Tem certeza? — pergunta, os olhos brilhando.
— Se é a minha casa, ela é sua também.
Pega as chaves da minha mão com um sorriso tímido. Como ela pode ficar linda de todas as formas? Faz sentido ela acreditar no sobrenatural. Sua própria existência ultrapassa os limites do mundano. Seja na beleza, na personalidade, no intelecto, em ser. Melissa deve ser uma figura mística colocada em minha vida. Nesse tipo de paranormalidade eu posso acreditar.
Melissa dá um beijo na minha bochecha e vai embora sorridente.
Tomo café da manhã completo pela primeira vez em dias. Perco bastante tempo no banho. O ferimento está feio. Embora esteja limpo, ele voltou a sangrar e tive que reforçar o aperto das ataduras para não abrir de novo. Coloco uma camisa preta com um moletom de capuz, jeans justos e saio de casa logo em seguida até o ponto de ônibus. Meu destino, porém, não é a faculdade e sim a UBS mais próxima.
O ambiente hospitalar é desagradável. Tenho essa sensação desde a infância. É como se o ar ao meu redor tentasse me comprimir até eu ser esmagado. Mal passo pelo portão de acesso e todo meu corpo fica tenso. Apesar de sempre ter notado a angústia, essa é a primeira vez que percebo que um frio incomum encosta em mim cada vez que entro nesses ambientes. Parece muito com aquele sentido nas aparições do Chapeleiro durante o pesadelo, mas a névoa não alcança esse lugar. Conectar essas coisas de maneira tão banal me faz rir enquanto a recepcionista levanta meus dados no computador. Eu devo estar mesmo apresentando os primeiros sintomas psicóticos, não existe outra explicação.
Após algum tempo de espera – que não é muito de acordo com o nível de gravidade do meu ferimento – sou atendido. Recebo receita para remédios para dor, um curativo decente, dois pontos e uma parabenização por ter cuidado tão bem mesmo sem conhecimentos. Volto para casa de ônibus, sem pressa, observando o movimento na cidade. Em certos momentos tenho a impressão de ver aquela entidade nos cantos da cidade, mas coloco os fones de ouvido e paro de prestar atenção.
Em casa, preparo macarrão instantâneo com ovo cozido já que minha mão esquerda está praticamente inutilizável e esgotei todas as minhas energias falando com as pessoas na rua. Como assistindo televisão e ao terminar coloco em um seriado bobo que vai me acompanhar até pegar no sono no sofá. Durmo apenas alguns minutos, o suficiente para repor as energias. Depois, desligo a televisão e tento lavar a louça, mas trabalhar com água é demais usando esse curativo.
Abro os dedos o máximo que posso, a pele costurada repuxa como se fosse abrir. Pego-me pensando no momento do acidente. Em como o copo tentou escrever uma mensagem antes de explodir.
— Claro, o copo — debocho do meu raciocínio.
Sirvo um copo d’água negando a ideia. Melissa deve ter forçado o movimento sem ao menos ter notado. Quanto mais forte é uma crença, mais capaz ela é de influenciar o cérebro de uma pessoa. Lembro-me de uma professora no primeiro semestre falando como certas manifestações religiosas podiam ser lidas como episódios psicóticos. Tenho certeza de que, no fundo, Melissa se lembra disso também, mas deve ser difícil colocar no dia a dia quando se acredita tanto nessas coisas.
Mas se for algo menos científico…, o pensamento invade de forma intrusiva. Quase posso ouvi-lo na voz de outra pessoa, na voz da minha mãe. Sacudo a cabeça tirando essa voz como um prego. Tomo o copo d’água todo em uma virada. Por que esses pensamentos fantasiosos estão insistindo tanto? Fantasmas não existem. Eles são projeções inconscientes. O Chapeleiro é um símbolo de medo no mundo inteiro. Ainda que ele fosse algo real, por que estaria me assombrando? Eu não sou especial.
Coloco o copo em cima da bancada da pia. Encaro o espaço vazio e penso na névoa que saiu do copo quebrado. A mesma névoa que vi no pesadelo em que Melissa foi arrastada para a escuridão. Se houver a possibilidade do sobrenatural ser verdade e tudo isso for uma assombração, significa que Melissa está em perigo ao ficar perto de mim.
Abro a lixeira com o pé e enfio a mão em busca da cartolina usada no dia anterior. Tem várias manchas vermelho-amarronzada espalhadas. Sacudo a folha e abro no chão da cozinha, sentando-se na sua frente. As letras que o copo, supostamente, percorreu formam a palavra “avo”, portanto, “avó” ou “avô”. Seguro o queixo entre os dedos e encaro a folha ensanguentada.
Por que um fantasma falaria sobre isso?
Começo a rir com o questionamento. Estou mesmo considerando o sobrenatural por causa de uma mulher. Não, isso não é justo. Minha mãe também tentou me convencer sobre isso a vida inteira e eu não aceitei. Depois da morte dela, Jonas também tentou, pois já estava envolvido com uma religião. Então não é por causa de uma mulher. É por causa de Melissa.
Paro de rir sacudindo a cabeça para os lados e volto a encarar a cartolina. Eu não conheci meus avós. Os paternos morreram antes de eu nascer e os maternos nem mesmo a minha mãe conheceu. Tento encontrar uma ligação com essa possível menção e o que está acontecendo agora. Em um lampejo dou de cara com o rosto de Bruno deitado em sua cama de madeira pouco antes dele ser enterrado como uma flor quebrada.
A visão me faz desviar o rosto. Foi tão recente que ainda posso sentir o peso do caixão em minha mão direita. Respiro fundo, olho para cima. Tenho um estalo sobre algo que pode ser relevante. Bruno estava interessado em nossa família antes de partir. Ficava falando que queria saber mais de nossas origens agora que éramos só nós dois.
— Eu acho que podemos estar perdendo algo importante — dissera na sacada enquanto fumávamos.
— Se tivesse alguém vivo, eles teriam aparecido quando a tia Hermínia faleceu, não acha?
Bruno dera um longo suspiro seguido de uma tragada silenciosa.
— Talvez estejam todos mortos, mas preciso descobrir mais.
Como a maioria das coisas que eles faziam, eu não insisti em seus motivos nem me intrometi. Aquilo pareceu importante para ele. Naquela noite, imaginei ser uma resposta natural ao luto. Em poucos meses nossa família diminuiu drasticamente, era natural que tentasse achar um fio que o conectasse a outras pessoas.
Paro na frente da porta do quarto que Bruno usava. Os sinais de arrombamento persistem nela. Se ele achou algo sobre nossa família, ele colocaria em suas coisas. Coloco a mão na maçaneta e sou esmagado pelas lembranças terríveis de dias atrás. Se eu tivesse chegado mais cedo, se eu tivesse notado os sinais, se eu tivesse… sacudo a cabeça para os lados. Nenhum desses pensamentos mudará o fato.
Empurro a porta com menos força do que foi necessário naquela noite. Desta vez, nenhuma perna pendurada me faz cair sentado aos prantos. Toco no disjuntor e o brilho amarelado da lâmpada reflete uma fina camada que aparenta ser poeira. Está frio como naquele sábado, suficiente para eu ficar arrepiado. Baixo os olhos, o chão onde piso é o mesmo em que os paramédicos tentaram mudar o rumo da sua partida. Sento-me na cama que ele deixou arrumada por não querer incomodar. Meus ombros pesam, escondo os olhos atrás da mão.
O silêncio é perturbador.
Começo a chorar sem controle. Ainda me lembro da sensação da faca na mão para tentar cortar a corda. Posso sentir o peso de seu corpo em meus braços. O som do interfone tocando com a chegada da ambulância da qual eu sabia que não tinha mais nada a fazer me assombra como um disco arranhado. Bruno perdeu suas pétalas sem que eu pudesse sequer tentar impedir.
Levanto o rosto molhado e enxugo os olhos com o polegar. Recaio a atenção sobre a estante onde fica a televisão e o videogame. Naquela noite havia também três folhas de ofício com uma mensagem escrita à mão, uma carta de despedida. A polícia deixou que eu tirasse foto delas antes de levar para a perícia, mas só após me interrogar sobre a possibilidade de ter sido um crime.
— O único crime foi eu não ter chegado antes — comentara a eles.
— Isso deve ser difícil, mas sabe se alguém poderia estar fazendo algo contra ele?
— Pelo visto, apenas ele mesmo — foi a minha resposta. Eles não perguntaram mais nada.
Agora, porém, eu é que me pergunto se aquelas três folhas foram as únicas escritas por ele para se despedir. Quando li aquelas três folhas, sendo a última uma transcrição de sua música favorita, eu apenas desabei. Naquelas que encontrei sua mensagem era bastante clara: arrependia-se de muita coisa. Frustrava-se com outras. Parecia infeliz e não via como seguir em frente após todas as tragédias enfrentadas em um curtíssimo espaço de tempo. Bruno havia perdido sua identidade ao tornar-se o irmão mais velho de repente, assim como perdeu quando se tornou órfão.
Procuro na lixeira ao lado da sua mesa de escritório. Acho muitos esboços de ilustrações que ele desistiu no meio do percurso. Bruno era o artista da família, estava começando a se consolidar em alguns espaços online pelos desenhos que fazia dos personagens de seus livros favoritos. Sorrio com tristeza, pois me recordo da nossa infância quando ele começou a desenhar. Ele adorava me mostrar e tentava sempre me ensinar a desenhar também, mas isso nunca foi meu lance.
Desisto de vasculhar o lixo. Se ele tentou escrever outras cartas, seus rascunhos não foram parar ali. Abro o guarda-roupa e começo a mexer nos materiais de papelaria. Encontro algumas folhas meio amassadas, com vários riscos e algumas letras. Encontrei, falo mentalmente, vitorioso. Pego com cuidado e folheio. As primeiras têm trechos semelhantes às cartas achadas, porém ele se interrompeu e preferiu trocar as palavras, então riscou o resto. Entretanto, no meio delas eu acho uma mensagem que para meu coração durante um instante.
“’Se eu soubesse o que fizeram com você, teria feito algo antes.
Me perdoa, vó.”
Tudo o que consigo fazer é sorrir e cair sentado na cama. Coincidências, explico, às vezes elas acontecem. Porque precisa ser mero acaso que a mensagem na cartolina tenha alguma semelhança com essa carta descartada. Melissa pode ter pensado na própria avó e mexido o copo de forma inconsciente. Talvez tenha sido eu mesmo a fazê-lo, pois estava pensando na família e nos possíveis históricos mentais. Deve ser algo simples como um reflexo mental, pois a outra opção não tem explicação razoável. Fantasmas não existem, repito o mantra que Jonas falara quando eu tinha sete anos.
Passado o susto da revelação, outras perguntas tomam conta. Bruno descobriu alguma coisa sobre a nossa avó, mas o quê? O que fizeram com ela? Como assim ele teria “feito antes”? Minha mãe mentiu ou foi uma vítima? Quem mais sabia a verdade? Qual é a verdade? Será que isso tem relação a tudo o que tem acontecido? Esse último pensamento eu mesmo censuro no momento que ele me acerta.
Decido não ceder aos pensamentos catastróficos e ao invés disso investigo mais as coisas de Bruno. Quanto mais toco em seus objetos, mais sinto um peso amarrando meu coração. Ele nunca mais encostará nessas coisas. Os desenhos inacabados permanecerão assim. Os rascunhos não encontrarão uma finalização. Aos poucos sinto o frio se espalhando no quarto, a camada de poeira parece ficar mais densa. Alguém observa cada movimento que faço, mas eu não posso parar por isso.
Eu só preciso de respostas.
Comentário do Autor
Estou de casa nova - literalmente. O mês de outubro foi de muitos acontecimentos. Começando pelo lançamento de VNES, depois uma festa de noivado e agora nos mudamos para uma casa mais aconchegante! Isso tudo tem sido uma loucura, mas daquelas boas, que esperamos por muito tempo. Fico feliz de que as coisas convergiram para que esse capítulo saísse após minha mudança, pois, neste momento, é ainda mais significativo. Lembro-me quando dei as chaves do apartamento para minha (hoje noiva) namorada e como ela ficou toda boba. Quis tentar transmitir um pouco a importância que esse gesto tem e teve para nós. Afinal de contas, esse livro todo é uma forma de falar do meu amor por ela e dos fantasmas que me afligem desde cedo.
Tenho visto, inclusive, alguns bons comentários sobre a situação do Ian ser horrível. Gosto de ver como as pessoas encaram isso com susto. Eu também encarei. Entre 2018 e 2019 tive uma série de perdas familiares - três para ser mais exato - cada um num espaço de cinco meses exatos. Coincidências? Maldições? Não sei, mas segui em frente aos trancos e barrancos e hoje escrevo sobre isso. Às vezes tragédias acontecem, eu acho. O importante é como seguimos caminhando mesmo com a canção do bode tocando no ambiente…