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Você Não Está Só #6
Capítulo 6 — Possessão
Anteriormente…
Após aceitar o convite de Melissa e ir ao centro espírita, Ian começa a ter experiências sobrenaturais e se prepara para uma limpeza espiritual…
dois corpos não ocupam o mesmo espaço
mas e duas almas, então?
tenho medo de não ter mais este abraço
se lhe perder para a escuridão…
Capítulo 6 — Possessão
Revisão: Bianca Ribeiro.
Camila abre a porta, vira uma placa e volta a fechá-la. Senta-se na frente da Bíblia, coloca as mãos sobre a mesa e respira fundo. Melissa parece assustada com a situação. Desde a revelação de que estou vendo o “mentor” dessa mulher, ela está com os olhos arregalados. Ainda não aceitei totalmente essa coisa de estar vendo um fantasma, espírito ou sei lá. Aquele homem é idêntico a qualquer outro. A única diferença nele é essa estranha camada de névoa que parece cercá-lo independente de onde ele esteja.
— Desde quando você vê esse homem de sobretudo? — indaga Camila.
— A primeira vez foi aos sete anos.
Sinto os olhos de Melissa em cima de mim.
Preferia não ter que falar disso. Camila parece notar porque não faz nenhuma pergunta adicional. A verdade é que aquela noite continua fresca na memória. Minha mãe havia saído para uma festa de aniversário de uma colega da empresa em que trabalhava. Jonas ficou responsável por cuidar dos irmãos mais novos.
Eu fui para a cama mais cedo, mas Bruno e Jonas permaneceram na sala assistindo aos novos DVDs que minha mãe havia comprado no camelô. Deixaram as luzes baixas para não me atrapalhar. Estava quase dormindo quando notei uma sombra chegando à porta. No começo pensei ser um deles, mas a silhueta não voltava para a sala. O frio invernal fez eu me encolher nas cobertas. Algo dentro de mim queria fugir. Algo dentro de mim queria gritar. Sussurram meu nome em algum lugar e em resposta eu me sentei na cama e quando meus olhos alcançaram a silhueta, foi como se tudo congelasse.
Aquele sorriso foi a coisa mais assustadora que vi em toda vida. Conseguia sentir toda a maldade por trás dele. Tentei gritar e o ar não saiu. Precisava chamar ajuda. Avisar aos meus irmãos de que estávamos sendo invadidos, embora isso não fizesse o menor sentido. Morávamos no terceiro andar, sem nenhuma sacada ou forma fácil de escalar. Além disso, o brilho avermelhado debaixo do chapéu não era humano.
— Você… — disse a silhueta.
Explodi um grito que doeu a garganta. Meus irmãos vieram correndo, acendendo as luzes e perguntando o que estava acontecendo. O homem de sobretudo preto sumiu em algum momento. Jonas subiu na cama, tocou meu rosto e verificou a temperatura com o dorso da mão. Bruno ficou na porta, encostado exatamente onde a entidade estava.
— Ele estava ali — eu apontei para Bruno que franziu o cenho. — Sorrindo, usando um chapéu, e era muito, muito alto!
Jonas suspirou.
— Não tem nada ali, Ian. Foi só um pesadelo.
— Foi real! Eu vi um fantasma, Jonas! Era um fantasma!
Bruno soltou uma risadinha debochada. Ele tinha nove anos. Jonas o fulminou com o olhar. Nossa mãe nos ensinou desde cedo a nunca nos diminuirmos, mas sim nos protegermos. Bruno pediu desculpas com a cabeça baixa. Jonas voltou a me encarar no fundo dos olhos.
— Fantasmas não existem, Ian.
— Promete?
— Prometo.
Jonas me abraçou apertado e ficou comigo até eu adormecer.
O mentor se levanta com calma. Sou atraído pelo seu movimento, cada passo deixa um rastro pálido no ar que desaparece no mesmo instante. Para atrás de Camila e bota as mãos nos ombros dela. Abre um sorriso gentil me olhando com aqueles orbes prateados.
— Será uma sessão simples. Iremos fazer algumas preces, depois encaminharemos este espírito para seu devido lugar.
Concordo mesmo não entendo coisa alguma.
— Vai ficar conosco, Melissa?
— Eu não vou deixá-lo sozinho. Faremos isso juntos.
Trocamos um olhar rápido, meu coração desorganizado pelas suas palavras. Melissa sorri sem mostrar os dentes. Segura minha mão, o calor se espalha por todo o corpo e tira um peso dos ombros. Volto a concordar, mas agora entendendo plenamente o que está sendo dito.
— Juntos — reafirmo e encaro Camila que está sorrindo assim como o mentor atrás dela.
— Então vamos começar.
A mulher coloca a Bíblia um pouco mais a frente, aberta em uma determinada passagem. Pede para fecharmos os olhos e darmos a mão sobre a mesa. Assim que isso é feito ela começa a entoar o Pai Nosso. Consigo acompanhar as duas na oração, pois essa a minha mãe fazia todos os dias. Depois disso elas começam a Ave Maria e a partir deste momento fico em silêncio, não conheço as demais preces.
Ouso abrir os olhos um pouquinho, a visão ainda é um pouco borrada, mas posso ver o corpo do mentor emitindo um leve brilho que irradia pelos ombros da mulher em correntes que se entrelaçam em nossas mãos. Camila respira fundo, interrompendo uma das preces. Fico de olhos completamente abertos. Camila mexe os ombros, incomodada. O mentor fecha os olhos, as sobrancelhas tensionadas deixam sua aparência um pouco mais dura.
Um arrepio toca minha espinha. Abro a boca e crio uma nuvem pálida. A mesa está coberta de uma névoa fina muito, muito gelada. Os pelos dos braços eriçam, mesmo cobertos pelo moletom. Aperto a mão de Melissa um pouco mais forte, está ficando difícil respirar com todo esse frio. Fecho os olhos com a sensação opressora que acompanha a névoa. A lembrança do pesadelo envolvendo Melissa invade minha consciência e me dá medo.
Melissa aperta forte minha mão. Camila encerra as orações e começa a chamar o espírito. O braço de Melissa estremece, seus dedos abrem e fecham em espasmos. A voz da médium hesita por um momento e isso é o suficiente para fazer minhas pálpebras serem puxadas por cordas invisíveis em busca de respostas. O que encontro é pior do que eu poderia imaginar.
Melissa está com a cabeça para trás, olhos revirados e corpo sacolejando.
— Mel? Mel? Melissa! — chamo seu nome mais outras tantas vezes, porém, ela não responde. — Camila, o que está havendo? Faz isso parar!
— Este não é o momento para se desesperar. Tenha calma, Ian.
— Como posso ter calma? Olha o estado dela!
Camila já estava ciente, por isso sua voz hesitou. O mentor atrás dela parece estar com dor. Não há mais brilho nos entrelaçando. Saliva escorre da boca de Melissa, a cabeça pende de um lado ao outro. Um sorriso começa a nascer no rosto dela, mas não parece em nada com aquele que estou acostumado a contemplar feito sol do amanhecer.
— Ela vai ficar bem? — questiono encarando Camila e seu mentor.
— Não.
A voz que responde não é de nenhuma das pessoas na sala.
Essa é a voz fúnebre da entidade.
— Quem disse isso?
Procuro o Chapeleiro em algum lugar da sala. Os ombros de Melissa começam a tremer e o sorriso no rosto dela se torna perverso, a cabeça suspensa de lado, os cachos rosados escondem o ombro. Baixa a cabeça, escapa uma risadinha. Abre os dedos devagar. Pressiono as sobrancelhas, confuso. Camila engole em seco soltando nossas mãos. Melissa levanta o rosto, encara a médium e depois vira o rosto para mim com os olhos branco-leitoso e um sorriso familiar.
Salto da cadeira, empurrando o móvel, e arregalo os olhos.
— Qual o seu nome? — Camila interroga.
— Isso não importa, não é mesmo, Ian?
A voz fúnebre sai de Melissa. O sorriso se alarga e agora entendo a familiaridade dele. Esta não é a expressão facial da minha melhor amiga. Esse sorriso e essa voz são da entidade que me persegue em pesadelos desde a infância. Ele só está usando o corpo de Melissa como um condutor de suas vontades malignas.
— Quem é você? — Camila insiste. Melissa encara-a com aqueles olhos.
— Um amigo de família.
Cerro os punhos, a raiva incendiando minha alma. O sorriso estampado no rosto de Melissa é nojento, carregado de malícia e maldade. Mesmo que esteja usando os mesmos dentes, a mesma boca, o mesmo rosto salpicado de estrelas, aquela não é a mulher por quem meu coração bate mais forte; ela jamais vestiria uma máscara tão horrível. Quando ela sorri, o sol brilha. Quando ela ri, as nuvens escuras se abrem.
Viro o rosto de lado, não consigo encarar esse momento.
Não quero que seja verdade.
— Não faça assim, garoto, olhe para mim — a voz fúnebre me provoca.
Eu não quero olhar. A risada que escapa pelos lábios de Melissa é diferente do adorável som que ela costuma fazer. Essa parece vir de dentro de um touro de bronze. Arregalo os olhos. Será que Melissa está em sofrimento dentro do próprio corpo, assim como uma vítima de tortura?
Camila está abalada, os lábios ficaram arroxeados. O mentor atrás dela encara o rosto da minha melhor amiga de forma muito, muito séria. As mãos ainda estão nos ombros da médium. A névoa se espalhou da mesa para o restante da sala e agora tudo está coberto com esse brilho pálido e frio. Eu não sei de onde está vindo, mas posso sentir enchendo meus pulmões e os congelando de dentro para fora.
— Vamos, garoto, já nos vimos tantas vezes antes — provoca a entidade.
— Estamos conversando — Camila alerta. — Quem é você?
— Desde quando devo satisfação a uma médium barata?
Essa é a primeira vez que noto a voz do Chapeleiro demonstrando algo diferente do deboche e cinismo de sempre. Ele parece irritado. Aperto os olhos, evito olhar para o rosto que conversa com a médium. Sei que estou errado, deveria encarar essa criatura, mas não sei o que acontecerá com Melissa quando ele tiver o que tanto procura. A chance de seu rosto amaldiçoado se tornar minha última lembrança dela é mais assustador do que qualquer acontecimento sobrenatural.
Camila parece perdida. Como se não soubesse muito bem como lidar com aquilo. Encontro seus olhos apertados, confusos. A névoa tornou-se mais densa em poucos segundos e seu mentor quase desaparece dentro da palidez.
— Eu não vim conversar com você, mulher.
— Mas se aceitou descer nessa sala sabe que eu sou a mediadora.
A criatura gargalha alto. Essa risada asquerosa que me deixa possuído pela raiva mais profunda que já senti. Quero ouvir o riso de Melissa. Viro o rosto em um lapso de coragem e cólera. Melissa encara a médium com um sorriso cínico, os olhos ainda branco-leitosos, seus dedos entrelaçados sobre a mesa imitando um criminoso na sala de interrogatório.
— Você se acha mesmo, mulher.
— Qual é o seu nome? — Camila dispara, ignorando a provocação.
— Tive vários ao longo dos séculos. Humanos adoram perder tempo nomeando as coisas achando que assim vão entendê-las. Será que vocês possuem tempo de sobra para perder com isso?
— Vários nomes? Por acaso é um demônio?
— Outro termo que adoram empregar para explicar as coisas. Claro, demônio. Chapeleiro, Bruxo, Capa Preta. Como preferir me chamar, meretriz.
Ele sabe como eu e outras pessoas o chamamos. Isso faz com que tudo aquilo que eu acreditava saber se quebre dentro de mim feito um galho podre. Camila engole em seco e leva a mão até a Bíblia. Eu não sei como ela conseguirá ler com toda essa névoa cobrindo o local. Melissa fecha o rosto, pende a cabeça de lado e cruza os braços.
Fico com o corpo tensionado em alerta.
— Acha que pode me exorcizar se souber meu nome?
— Eu não sou nenhum padre para fazer algo assim — Camila retruca.
— Tenho certeza de que não, por mais que tenha transbordado sua semente várias vezes. Uma pena que arrancou o fruto antes do tempo, talvez formassem uma bela família.
— Como você sabe?
Volta a rir, agora contido. Camila parece terrivelmente abalada. Já não enxergo mais o mentor atrás dela ou em lugar algum dessa sala. A médium estremece os lábios ao apertá-los com raiva. Será que ela pode mesmo se permitir tais sentimentos? Minha mãe falava que para lidar com o mal era necessário matar o sentimentalismo, por mais paradoxal que isso soasse.
— Há muito mais neste mundo do que vocês humanos podem entender.
— Foda-se! — Bato a mão na mesa, chamo a atenção de ambos. — Pouco me importa essas coisas. Você quer falar comigo, então vamos conversar, mas saia do corpo da Melissa agora.
As sobrancelhas de Melissa sugerem confusão, mas o sorriso que ameaça invadir o semblante é asqueroso. Então ele começa a rir, os cabelos rosados sacodem fazendo a névoa se dissolver em espirais. Sacode o corpo, para frente e para trás, ficando descontrolada.
— Esse olhar é igual ao dela!
— Não sei do que está falando — resmungo, forço-me a encará-lo nos olhos branco-leitosos. Preciso evitar demonstrar medo ou quaisquer tipos de sentimentos se quiser enfrentar isso. No entanto, no fundo, não sei o que ele pode fazer com Melissa. — Seja como for, deixe logo ela em paz, você quer conversar comigo, não com ela.
— Claro, você não sabe. A vagabunda da sua mamãezinha não lhe ensinou nada sobre suas origens, não é? Sempre tentando me manter afastado…, eu faço parte da família, sabe?
Ouvi-lo é difícil, mas vê-lo mover os lábios de Melissa para falar é muito pior. Ela jamais falaria assim de outra mulher. Jamais. Isso só me faz pensar se Melissa continua em algum lugar daquele corpo ou se já a perdi como todos que amei.
— Por que você insiste que é algo da família dele? — Camila questiona, a expressão menos abatida.
Melissa volta a nublar a expressão.
— Sou amigo íntimo da avó dele. Fizemos um pacto no passado.
— E o que ele tem a ver com isso?
Engulo em seco. Não consigo esconder o medo, ainda mais agora que Melissa me encara com olhos branco-leitosos e o sorriso impertinente da entidade em seu corpo. Solta um riso anasalado cheio de escárnio. Mexe a cabeça, estala o pescoço, suspira.
— Cumpri minha parte, agora é a vez dela.
— Minha avó morreu há décadas — falo alto, atraindo sua atenção.
— Aquela vagabunda conseguiu até mesmo isso?!
Em um piscar de olhos o corpo de Melissa voa sobre o meu, seus dedos pressionam minha cabeça e seus olhos revirados me encaram cintilantes com o sorriso asqueroso. Perco o equilíbrio, caio e bato as costas no chão. Sinto o ar abandonar os pulmões. Embora seja o corpo dela, seu peso também está completamente diferente.
— Sua alma tem um aroma delicioso — fala e passa a língua pelos lábios.
— Então por que não a devora e deixa a Melissa em paz?
— Você dois são parecidos, adoraria me deleitar mais com essa alma, mas não posso mudar o contrato depois de feito.
Solta minha cabeça de forma abrupta. Bato no chão, tudo gira. A névoa deixa tudo muito confuso. O mentor me oferece a mão e eu aceito, a mão é fria como um cadáver. Fico em pé, os pelos eriçados, e encaro Melissa voltando a mexer a cabeça e estalar o pescoço. Alguma coisa não está certa. Tenho medo de estar perdendo Melissa diante dos meus olhos.
— O que eu preciso fazer para esse acordo se cumprir?
Camila me censura em silêncio. Melissa ri anasalado. Olha em minha direção com um dos olhos voltando ao normal, embora ainda seja a feição da entidade dentro dela.
— Você deve morrer.
Talvez eu seja um idiota por acreditar em um monstro como ele, mas a resposta provoca um tremor no meu corpo e eu paraliso com um sorriso idiota. Essa é a única verdade absoluta da vida: vamos morrer. Ouvi-lo, porém, é a mesma coisa que receber uma sentença.
— Essa vadiazinha é resistente — ele reclama colocando a mão no pescoço, o olho direito deixa de ficar branco e se torna humano outra vez. — Talvez eu devesse fazer um pacto com ela também.
— Não! Você não vai fazer nada com ela.
Camila arregala os olhos. Um fio de sangue escorre pelo olho direito de Melissa. A névoa começa perder a densidade, desaparecendo no ar. Melissa acena com uma mão, despedindo-se. O sorriso ainda é da entidade.
— Aproveite as últimas sete semanas, Ian.
As luzes piscam acima de nossas cabeças, uma enorme sombra é projetada como se estivesse saindo do corpo dela. Ambos os olhos se tornam normais e sangram, assim como nariz e ouvidos. A risada da entidade ecoa no ambiente uma última vez. Melissa revira os olhos, perde a consciência e cai de frente rumo ao chão. Salto por instinto, o coração ainda errando as batidas de tanto medo. Consigo segurá-la antes que a queda a machuque, mas ela continua inconsciente.
A névoa se dissipa por completo. Coloco o ouvido no peito de Melissa. Levanto o rosto, as lágrimas caindo sem controle, e clamo por ajuda imediata. Eu mal consigo sentir o pulso de Melissa.
Por favor, não me deixe.
Comentário do Autor
Happy Halloween!
Tick-tack, o tempo está passando para Ian. Melissa acabou de sofrer algo terrível por causa dessa mesma maldição. Um pacto foi feito no passado e… muita informação de uma só vez! Pergunto-me se realmente há uma forma de sobreviver a isso tudo… o que você acha?
Obrigado por aproveitar a jornada do primeiro mês de Você Não Está Só e nos vemos no mês que vem!