Você Não Está Só #7

Capítulo 7 — Culpa

Anteriormente…

Após o jogo do copo acusar a presença de espíritos na casa de Ian, ele e Melissa decidiram visitar o centro espírita. Ian começou a ver pessoas estranhas na casa, sendo abordado por Camila, uma médium, que notou sua sensibilidade espiritual e o estranho vulto que o persegue. Logo os três iniciaram uma sessão espírita para tentar conversar com a assombração, mas as coisas saíram do controle…

se você se perder na escuridão

quem segurará meu coração?

Culpa.

Capítulo 7 — Culpa

Revisão: Bianca Ribeiro.

Dois paramédicos entram na sala e atendem Melissa no chão. Assisto eles conferindo pulso, fazendo exames rápidos e começando a preparar o transporte. Parece que estou revivendo a noite em que Bruno se foi. Tudo acontece de forma semelhante. Acho que são até os mesmos paramédicos. Abraço os joelhos em silêncio. Um dos profissionais sai da sala para pegar a maca, o que pode significar um monte de coisas. As pessoas estão se esmagando na frente da porta da sala para ver o que está acontecendo, a curiosidade humana é perversa às vezes.

Camila conversa com um homem vestindo branco, não sei se humano ou espiritual. Essa confusão faz um peso maior sobre meus ombros. A situação seria assustadora o suficiente se fosse apenas um caso de psicose, mas ter enxergado com meus próprios olhos o mundo além do véu da realidade é apavorante, de várias maneiras.

Como lidar com um mundo que nunca acreditei ser real?

Os profissionais de saúde começam a ajeitá-la na maca. Diferente de como fizeram com Bruno, ela não é coberta por um saco preto. Isso significa ainda haver esperança.

— Alguém irá acompanhá-la?

Levanto o braço no mesmo instante. Eu não posso deixá-la sozinha. Ergo-me com dificuldade, as pernas estão tremulas com as possibilidades que passam na mente. Camila deposita um olhar preocupado sobre mim.

— Sinto muito por isso, Ian — fala baixinho.

— Você não tem culpa.

Apesar disto, no fundo, quero xingá-la. A ideia dessa sessão foi dela. Melissa queria apenas um passe, não uma conversa com um demônio. Agora minha melhor amiga está inconsciente com mancha de sangue debaixo dos olhos, narinas, boca e ouvidos. Ainda tem um pouco de sangue no chão que escorreu dela. Os paramédicos limparam o melhor que podiam para examiná-la.

— Tome cuidado — Camila alerta.

— Você também.

Vou para fora do centro espírito debaixo de olhares curiosos. Entro na ambulância, o cheiro faz meu estômago embrulhar e as memórias das despedidas enchem os pensamentos. A porta é fechada com força. Coloco o cinto de segurança, o paramédico fica sentado ao lado de Melissa conferindo seus sinais vitais mais uma vez. Embora ele não demonstre muitas coisas através do rosto, a preocupação nas ações chama atenção; dois minutos depois ele confere de novo, a ambulância em movimento.

— Ela vai ficar bem?

— Ainda é cedo para falar alguma coisa.

Concordo em silêncio, esfregando os dedos sobre o colo.

— Qual é a hipótese de vocês?

— É realmente melhor esperarmos até—

— Não precisa enrolar — interrompo-o. — Eu só preciso saber a gravidade para saber se preciso chamar a mãe dela.

— Precisa.

Entendi, ela vai embora também.

Envio um áudio para Diana explicando de forma rasa que Melissa sofreu um acidente e para qual hospital estamos indo. Pouco depois a ambulância estaciona. A porta abre de supetão, os enfermeiros e paramédicos quebram a postura de tranquilidade a tirando com pressa de dentro do automóvel. Assisto ela ser levada em silêncio, um dos responsáveis me explica como devo fazer sua entrada na recepção e logo serei chamado, quando tiverem mais notícias.

Entrego os documentos a recepcionista. Lembro-me do rosto dela absorvido pelas trevas no pesadelo. A moça do outro lado do balcão digita pesado, o barulho das teclas se mistura a culpa dentro de mim, como centopeias se contorcendo nos ouvidos. As lágrimas rolam pelas bochechas sem que eu tenha controle. Melissa está indo embora assim como todos os outros. Recebo uma pulseira de visitante. Peço liberação do guarda na porta dupla de ferro e logo estou sentado em um corredor apertado, cinzento e barulhento à espera de uma notícia. Posso ouvir um homem gritando de dor, as conversas despreocupadas da equipe hospitalar que vive anestesiada por ter que ver as mesmas coisas todos os dias.

Sacudo a perna, não quero acreditar no que está acontecendo.

Por que todas as pessoas que amo se despedaçam nas minhas mãos?

Aperto as mãos contra os olhos, deixando o choro sair sem me importar com o que as pessoas vão pensar. Nenhuma delas conhece a dor que existe dentro de mim. Essas lágrimas, porém, não são apenas de dor, mas de uma raiva estranha contra algo que eu não acreditava existir até poucos minutos atrás; no espírito maligno que me persegue. Aos poucos, porém, essa raiva vai se transformando em uma substância obscura que desenha uma silhueta feminina de uma avó a qual nunca conheci. Por fim, sou tomado por essa sensação, odiando minha própria existência por ter colocado a pessoa mais incrível do mundo diante de um perigo surreal.

As lágrimas se tornam uma risada.

Devo ter ficado insano por estar colocando a culpa em uma pessoa morta há décadas e uma suposta entidade sobrenatural. Bato as mãos nos joelhos, sacudo o rosto, o sorriso largo. Mesmo com a visão turva, vejo os pés se distanciando de mim. Até elas notaram que perdi a cabeça. Encosto a nuca na parede e encaro o teto branco, as luzes fortes machucam meus olhos.

Os pelos dos braços ficam eriçados. Sinto o frio correndo as canelas. Permaneço olhando o teto. Uma fina camada pálida começa a tomar forma na frente da lâmpada. Fecho os olhos, não quero pensar nessas coisas. No entanto, tudo o que encontro dentro da minha consciência são os rostos dos últimos três enterros; a serenidade de quem nunca mais retornará. Melissa se tornará o quarto rosto? A menção ao seu nome faz meu âmago vibrar. Eu não quero que isso aconteça. Não quero, não quero, não quero…

Volto à realidade ao sentir o celular vibrar no bolso. A mãe de Melissa chegou e está na recepção. Pior do que ter dado uma notícia terrível pelo telefone é ter que encarar a pessoa, ainda mais se você é o culpado. Respiro fundo, olhos fechados. Ainda não tenho nenhuma notícia, então preciso encontrar as palavras certas para não fazê-la se desesperar demais, mesmo se, no fundo da minha alma, o pesadelo continue reverberando.

Guardo o celular após avisar que estou indo até ela. Enxugo o rosto e me levanto, as pessoas que estavam ao meu redor se sentaram longe de mim. A névoa parece rarefeita demais se ainda existe. Preciso manter uma postura firme se quero mantê-la calma. Tive aulas na faculdade sobre como dar notícias ruins a familiares e mesmo que eu saiba ser impossível aplicá-los plenamente com pessoas próximas, preciso tentar pelo menos os conceitos básicos.

Quando encontro Diana na recepção e vejo as lágrimas em seus olhos, toda teoria desaparece como um sopro.

Eu só quero pedir perdão por ter colocado a filha dela nessa situação.

— Ian, como ela está? — pergunta com a voz embargada.

— Eles ainda não deram nenhuma notícia…

Diana coloca as mãos em meus ombros, baixa a cabeça e posso ver seu coração se partindo em pedaços, porém ela faz um esforço descomunal para juntar cada fragmento antes de erguer o rosto. As duas são muito parecidas; mesmos olhos, mesmas sardas no rosto, mas a mãe tem sinais de idade e os cabelos cacheados são castanhos.

— Como isso aconteceu?

Eu não sei como explicar a ela que sua filha foi possuída. Sentamos e conto que estávamos no centro espírita quando ela começou a se sentir mal e teve o sangramento. Diana presta atenção, balançando a cabeça a cada novo detalhe. Ela não questiona a falta de explicação dos motivos de estarmos lá, do que estava acontecendo durante a sessão espírita no momento da tragédia e agradeço mentalmente por isso, nunca acharia as palavras corretas.

— Obrigada por dar uma chance a minha filha.

— Chance? Desculpa, eu não entendi.

Diana enxuga os cantos dos olhos com um lenço tirado da bolsa. Pelas roupas chiques diria que estava no escritório de advocacia em que trabalha. Devia ser um dos dias em que ela fica até mais tarde resolvendo problemas burocráticos.

— Eu não aguentaria perder outro filho sem ter chance de salvar.

Pressiono os olhos. Diana nota minha confusão.

— A Mel nunca te contou como conseguiu as cicatrizes?

— Não…

Balança a cabeça como se uma chave virasse dentro dela.

— Quando ela melhorar, poderá te contar.

— Está bem…

— Por enquanto, muito obrigada.

Desvio o rosto, pois não mereço agradecimentos.

As portas de metal trazem uma médica de jaleco e cabelos presos chamando os acompanhantes de Melissa da Cruz Souza. Saltamos das cadeiras até a mulher que ajeita a prancheta nos braços. Explica que os exames deram inconclusivos, pois não encontraram nenhum problema físico. Diana suspira e balança a cabeça para os lados. Eu sinto como se esses resultados fizessem muito, muito sentido.

— Ela está acordada se quiserem falar com ela e…

O resto de suas palavras não alcançam meus ouvidos.

Deixo-as para trás, entro no corredor cinzento e avanço apressado. Melissa está acordada. Melissa está viva. Eu não preciso de mais nada neste momento, apenas encontrá-la. Passo na frente de uma sala aberta e viro o rosto em reflexo à silhueta que capturo com a visão periférica. Meus olhos saltam ao ver o rosto cinzento e os olhos branco-leitosos acompanhados da aparência exata da minha mãe coberta por uma cortina pálida que paira sobre seu corpo, mas nem mesmo uma alucinação tão nítida me faz parar de correr em direção a Melissa.

Entro na sala de recuperação, existem diversas macas com outros pacientes sendo tratados. A enfermeira sentada atrás do balcão aperta seus olhos em minha direção. Vasculho o resto do ambiente até encontrar os cachos rosados de Melissa esparramados no travesseiro, sua atenção no outro lado do salão. Não posso conter o sorriso em vê-la de novo. Ameaço dar o primeiro passo, mas sou impedido pela enfermeira que vem perguntar o que estou fazendo ali. Melissa escuta minha voz e vira no mesmo instante com o enorme sorriso apaixonante que apenas ela possui.

Corto a distância entre nós em um piscar de olhos. Abraço-a tomando cuidado para não arrancar os acessos em seu braço. Ficamos assim por um tempo considerável, eu acho. Estar com ela sempre afeta minha noção de tempo.

Deposito um beijo lento em sua testa.

Ela está quente, cheia de vida.

— Fiquei com tanto medo, Mel.

Coloco sua cabeça em meu peito e apoio o queixo nela. Ela mantém os braços ao meu redor. As lágrimas ameaçam cair outra vez. Sinto o frio do ambiente atacar meus ossos, estou com medo de a minha presença ser um perigo a vida dela após o que aconteceu.

— Eu também — confessa Melissa.

— Do que você se lembra?

Sento-me na beira da cama, os olhos dela estão fragilizados. Espio nosso redor em um lampejo. Vários leitos estão cobertos com uma camada de névoa fria, monitores indicando batimentos fracos, choros de familiares esculpidos dentro do frio.

— Quase tudo. — Melissa corta minha atenção. — Eu vi e ouvi tudo, apenas não podia me controlar. Sei exatamente o que o espírito te falou, sobre sua avó, sua mãe, tudo.

— Ele falou com você?

— Não exatamente. Eu comecei a tentar me mexer e acho que isso fez alguma coisa, pois ele falou que sou forte, mas não me ofereceu acordo nenhum. De repente tudo ficou escuro e quando acordei já estava nessa cama.

Se eu não tivesse presenciado a possessão eu não acreditaria. Poderia justificar tudo o que ela me descreveu como um episódio de dissociação, provavelmente será o diagnóstico dos médicos, mas não após ver aquele sorriso asqueroso estampado no rosto dela. Melissa nunca conseguiria expressar algo tão horripilante.

— Desculpa. Eu não queria te envolver nisso.

— Você não fez nada, Ian.

— Se eu tivesse ficado quieto…

— Quando vai entender que eu me importo com você?

Interrompe meu lamento e me faz olhar fundo em seus olhos.

Desvio o rosto, envergonhado.

— Eu não quero te envolver nas minhas merdas.

— Se isso significa ficar com você, eu não vou me importar.

Desabrocho um sorriso que pode ser visto a quilômetros de distância. Trato de afogá-lo na culpa, pois não devia ficar feliz com isso. Não mereço. Melissa está em uma cama de hospital por minha causa.

— Até que eu resolva essas coisas, acho melhor nos afastarmos.

— Você acha mesmo que vai se livrar de mim assim tão fácil depois de me dar as chaves do seu apartamento?

Isso faz meu corpo inteiro ferver de vergonha. A enfermeira no balcão a apenas alguns metros de nós solta um risinho. Quero enfiar minha cara num buraco e nunca mais tirá-la, mas quando olho para a mulher na minha frente, enxergo apenas um sorriso caloroso.

Cruzo os braços, pendo a cabeça de lado, o sorriso não sai de mim.

— Eu não quero me livrar de você nunca.

— Cuidado com o que deseja — debocha fazendo uma careta.

— Eu sei muito bem o que eu desejo, Melissa.

A expressão brincalhona dela se esvai em surpresa. Ela não fala nada, nem precisa porque sei que entendeu perfeitamente as minhas palavras.

Antes que as coisas fiquem um pouco mais sérias, a mãe dela chama seu nome e atrai nossa atenção. Diana quase me derruba para abraçar a filha, derramando todo o choro que esteve contendo nos últimos minutos. Isso faz o bom senso voltar à minha cabeça: essa mulher quase perdeu a filha para sempre, tudo por minha causa.

Diana enche a filha de beijos. Aproveito o momento para escapar de fininho. Antes de sair dou uma boa olhada nas duas. Melissa me nota, arqueia as sobrancelhas e pronuncia “fique” em silêncio. Diana falou sobre ter perdido um filho, não posso imaginar como ela está se sentindo neste momento e não acho que seja um espaço para alguém fora da família.

Saio da sala com uma sensação estranha no peito. Ainda me sinto culpado, porém um alívio encontra espaço para crescer. Melissa sobreviveu apesar do terror que a fiz enfrentar. Mesmo após descobrir o sobrenatural e sua influência em minha vida, por mais que tenha chegado a respostas mais confusas ainda e tudo tenha ficado um pouco mais sombrio… Melissa está viva. Isso é o suficiente para eu ver uma luz no fim do túnel.

Caminho pelo corredor sentindo o frio nas pernas, o branco translúcido volta a ser visível nos corredores mórbidos do hospital. Volto até a sala que, minutos antes, pensei ter visto minha mãe. Ela está vazia. Deve ter sido um reflexo ou apenas outra pessoa que meu cérebro traduziu de maneira grotesca. Não quero negar o sobrenatural depois do que presenciei, mas também não consigo apenas aceitar que as pessoas que se foram possam retornar a este mundo.

Saio do hospital, acendo um cigarro e trago devagar antes de deixar o choro me quebrar.

Comentário do Autor

Chegamos ao fim da Parte 1: Contatos Sobrenaturais, o primeiro arco da história, servindo como a introdução perfeita da webnovel. Quando estava ainda na fase de rascunho do projeto decidi que faria a separação por partes/arcos como outras novels/mangás/animes porque gosto dessa dinâmica. O próximo arco se chama "Laços Sobrenaturais” e vai ter mais 7 capítulos para os fantasmas nesse Quarto Assombrado. Agora você pode convidar as pessoas para lerem com a introdução completa, assim elas podem ter um gostinho maior do que as espera.

Imagino que você tenha ficado em desespero com o final do capítulo anterior - tenho certo histórico trágico envolvendo personagens queridas -, mas agora você acredita em mim quando digo que esse livro é diferente de tudo que já escrevi? Estamos acompanhando uma história de amor… certo?

Semana que vem começamos o segundo arco. Como será que esses dois vão ficar depois de tamanha tensão e descobertas? Nos vemos lá!

GOGUN.